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São Paulo, quinta-feira, 11 de setembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Por trás da palavra

O presidente Bush prestou ao mundo um serviço intelectual. Impossível? Bem, trata-se só de uma palavra, mas de grande utilidade para sintetizar um conceito com muitas implicações. O governo Bush, não importa se a contragosto, trouxe do longo banimento para o uso corrente a palavra "imperialismo", presença frequente, hoje em dia, até no superpatriótico "The New York Times".
Interessante o destino dessa palavra. Seu uso se ergue na França, em publicações como a "Revue des Deux Mondes" que atravessou os tempos desde meados do século 19, nos ensaios sobre a Inglaterra. Os ingleses, por sua vez, passaram a aplicá-la em relação à política francesa na Ásia e na África. Na virada para o século 20, já a Rússia czarista e a Alemanha estavam incluídas, também, no mesmo conceito, que se tornara básico em numerosas ambições nacionais. E então a palavra imperialismo começou a viver suas primeiras dificuldades existenciais.
Incorporada à infantaria vocabular do movimento comunista em expansão, a palavra sobrecarregou-se de sentido ideológico. Passou a ser dada, nos países capitalistas, como indício de pensamento revolucionário. Mas na maturidade cultural e institucional de países como Inglaterra e França, sobreviveu em sua função de instrumento teórico e como razão crítica. Até a Segunda Mundial.
A Guerra Fria, que dividiu desigualmente o mundo entre os liderados pelos Estados Unidos e os encabeçados pela União Soviética, estigmatizou absolutamente a palavra imperialismo nos países do primeiro bloco. O conceito, para servir à propaganda no lado americanista, sofreu uma intervenção plástica e ficou batizado de "satélites da URSS". Mas, destruídos pelo pós-guerra os imperialismos britânico e francês, os Estados Unidos os sucederam sem admitir, nem em uso acadêmico, o rótulo justificado pela prática: seria aceitar a negação da herança altruísta legada pelos Fundadores da Nação, seria renegar Jefferson e os outros pais da pátria.
O problema dos Estados Unidos com a palavra e com seu significado já vinha de longe, e desde muito escamoteado. Até mesmo, para esse fim, com manobras tão desprezíveis como o forçado desaparecimento de parte da obra de um dos orgulhos nacionais norte-americanos. Mark Twain não foi apenas o humorista e autor de literatura leve que muitos ainda imaginam nele. Foi combativo dirigente da Liga Antiimperialista Americana, organização que lutava contra a "anexação imperialista" de Cuba, Filipinas, Guam e Porto Rico. (Os quatro foram anexados, Cuba e Filipinas com guerras terríveis).
De final do século 19 até sua morte, em 1910, Mark Twain fez conferências e ensaios incessantes, a partir de uma determinação assim expressa: "Oponho-me a deixar que a Águia [o símbolo dos Estados Unidos] ponha suas garras sobre qualquer outra terra". A importância e a coragem da Liga e seus integrantes estão bem sugeridas na sua denúncia de campos de concentração criados pelos americanos nas Filipinas. A obra política de Mark Twain foi excluída até recentemente das reedições de seus artigos, conferências e livros. É exemplar, como elaboração e pela importância histórica. Vale a pena lê-la em "Patriotas e Traidores", há pouco lançado, em excelente edição, pela Editora Fundação Perseu Abramo.
A política imperialista de Bush -frase que agora se pode ler em publicações americanas- é, pois, outra fase de exacerbação de uma tendência americana que começou com a consolidação econômica do país, há pouco mais de cem anos. Mas tem suas peculiaridades e personagens com traços sinistros muito próprios. Newton Carlos, o último jornalista brasileiro verdadeiramente especialista em política internacional, e de uma competência que o situa entre os mais informados e habilitados do jornalismo internacional, dá uma configuração serena, objetiva e sólida do que são a política e as personagens centrais do poder americano no recém-lançado "Bush -e a doutrina das guerras sem fim" (Editora Revan).
Bush, a rigor, é um seguimento quase linear das políticas dos Estados Unidos desde a morte de Kennedy, com o interregno do governo de Jimmy Carter e, em menor proporção, dos recentes anos de Bill Clinton. Isso fica muito claro na pesquisa a que se entregou o irmão de uma das mulheres presentes nas torres de Nova York abatidas há precisos dois anos. O canadense Peter Scowen quis perscrutar o caminho aberto pelos Estados Unidos à penetração de uma ira tão grande como a dos terroristas do 11 de setembro. Também vale a pena acompanhá-lo nas preciosidades, muitas saídas recentemente de arquivos oficiais, de "O livro negro dos Estados Unidos", há pouco lançado pela Editora Record.
Não é por divergências jurídicas que os Estados Unidos não aderem à instalação do Tribunal Penal de Crimes contra a Humanidade, também citado, no Brasil, como Tribunal Penal Internacional. Muitas das razões, documentadas com as revelações há pouco provenientes de fontes oficiais, relacionam-se com o golpe no Chile que faz 30 anos. Um dos grandes crimes da política americana contemporânea, cujo regente foi um dos grandes criminosos impunes: Henry Kissinger. Mas não foi seu único crime contra a pessoa e contra a humanidade. "O julgamento de Kissinger", da Boitempo Editorial, é um relato documentado muito atualizado de Christopher Hitchens sobre os fatos monstruosos de que o então assessor de Segurança Nacional e Secretário de Estado é personagem privilegiada, a meio de milhões de mortos em episódios na Ásia, na América Latina, na África e até na Europa. Mortos também americanos, aos milhares.
São livros de quatro jornalistas. Com linguagem de jornalistas, não de acadêmicos. Com finalidades jornalísticas, e com grandeza humana.


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