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JANIO DE FREITAS
Por trás da palavra
O presidente Bush prestou
ao mundo um serviço intelectual. Impossível? Bem, trata-se
só de uma palavra, mas de grande
utilidade para sintetizar um conceito com muitas implicações. O
governo Bush, não importa se a
contragosto, trouxe do longo banimento para o uso corrente a palavra "imperialismo", presença frequente, hoje em dia, até no superpatriótico "The New York Times".
Interessante o destino dessa palavra. Seu uso se ergue na França,
em publicações como a "Revue des
Deux Mondes" que atravessou os
tempos desde meados do século 19,
nos ensaios sobre a Inglaterra. Os
ingleses, por sua vez, passaram a
aplicá-la em relação à política
francesa na Ásia e na África. Na
virada para o século 20, já a Rússia czarista e a Alemanha estavam
incluídas, também, no mesmo
conceito, que se tornara básico em
numerosas ambições nacionais. E
então a palavra imperialismo começou a viver suas primeiras dificuldades existenciais.
Incorporada à infantaria vocabular do movimento comunista
em expansão, a palavra sobrecarregou-se de sentido ideológico.
Passou a ser dada, nos países capitalistas, como indício de pensamento revolucionário. Mas na
maturidade cultural e institucional de países como Inglaterra e
França, sobreviveu em sua função
de instrumento teórico e como razão crítica. Até a Segunda Mundial.
A Guerra Fria, que dividiu desigualmente o mundo entre os liderados pelos Estados Unidos e os
encabeçados pela União Soviética,
estigmatizou absolutamente a palavra imperialismo nos países do
primeiro bloco. O conceito, para
servir à propaganda no lado americanista, sofreu uma intervenção
plástica e ficou batizado de "satélites da URSS". Mas, destruídos pelo
pós-guerra os imperialismos britânico e francês, os Estados Unidos
os sucederam sem admitir, nem
em uso acadêmico, o rótulo justificado pela prática: seria aceitar a
negação da herança altruísta legada pelos Fundadores da Nação, seria renegar Jefferson e os outros
pais da pátria.
O problema dos Estados Unidos
com a palavra e com seu significado já vinha de longe, e desde muito
escamoteado. Até mesmo, para esse fim, com manobras tão desprezíveis como o forçado desaparecimento de parte da obra de um dos
orgulhos nacionais norte-americanos. Mark Twain não foi apenas
o humorista e autor de literatura
leve que muitos ainda imaginam
nele. Foi combativo dirigente da
Liga Antiimperialista Americana,
organização que lutava contra a
"anexação imperialista" de Cuba,
Filipinas, Guam e Porto Rico. (Os
quatro foram anexados, Cuba e
Filipinas com guerras terríveis).
De final do século 19 até sua
morte, em 1910, Mark Twain fez
conferências e ensaios incessantes,
a partir de uma determinação assim expressa: "Oponho-me a deixar que a Águia [o símbolo dos Estados Unidos] ponha suas garras
sobre qualquer outra terra". A importância e a coragem da Liga e
seus integrantes estão bem sugeridas na sua denúncia de campos de
concentração criados pelos americanos nas Filipinas. A obra política de Mark Twain foi excluída até
recentemente das reedições de seus
artigos, conferências e livros. É
exemplar, como elaboração e pela
importância histórica. Vale a pena
lê-la em "Patriotas e Traidores",
há pouco lançado, em excelente
edição, pela Editora Fundação
Perseu Abramo.
A política imperialista de Bush
-frase que agora se pode ler em
publicações americanas- é, pois,
outra fase de exacerbação de uma
tendência americana que começou com a consolidação econômica do país, há pouco mais de cem
anos. Mas tem suas peculiaridades
e personagens com traços sinistros
muito próprios. Newton Carlos, o
último jornalista brasileiro verdadeiramente especialista em política internacional, e de uma competência que o situa entre os mais informados e habilitados do jornalismo internacional, dá uma configuração serena, objetiva e sólida
do que são a política e as personagens centrais do poder americano
no recém-lançado "Bush -e a
doutrina das guerras sem fim"
(Editora Revan).
Bush, a rigor, é um seguimento
quase linear das políticas dos Estados Unidos desde a morte de Kennedy, com o interregno do governo
de Jimmy Carter e, em menor proporção, dos recentes anos de Bill
Clinton. Isso fica muito claro na
pesquisa a que se entregou o irmão
de uma das mulheres presentes
nas torres de Nova York abatidas
há precisos dois anos. O canadense
Peter Scowen quis perscrutar o caminho aberto pelos Estados Unidos à penetração de uma ira tão
grande como a dos terroristas do
11 de setembro. Também vale a pena acompanhá-lo nas preciosidades, muitas saídas recentemente
de arquivos oficiais, de "O livro negro dos Estados Unidos", há pouco
lançado pela Editora Record.
Não é por divergências jurídicas
que os Estados Unidos não aderem à instalação do Tribunal Penal de Crimes contra a Humanidade, também citado, no Brasil,
como Tribunal Penal Internacional. Muitas das razões, documentadas com as revelações há pouco
provenientes de fontes oficiais, relacionam-se com o golpe no Chile
que faz 30 anos. Um dos grandes
crimes da política americana contemporânea, cujo regente foi um
dos grandes criminosos impunes:
Henry Kissinger. Mas não foi seu
único crime contra a pessoa e contra a humanidade. "O julgamento
de Kissinger", da Boitempo Editorial, é um relato documentado
muito atualizado de Christopher
Hitchens sobre os fatos monstruosos de que o então assessor de Segurança Nacional e Secretário de
Estado é personagem privilegiada,
a meio de milhões de mortos em
episódios na Ásia, na América Latina, na África e até na Europa.
Mortos também americanos, aos
milhares.
São livros de quatro jornalistas.
Com linguagem de jornalistas,
não de acadêmicos. Com finalidades jornalísticas, e com grandeza
humana.
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