|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DA 2ª
CNA pede subsídios e vê "leniência" do governo com invasões; Contag diz que falta visão social no setor
MANOEL JOSÉ DOS SANTOS E ANTÔNIO ERNESTO DE SALVO
Incentivos ao agronegócio opõem ruralista e agricultor
EDUARDO SCOLESE
JULIA DUAILIBI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
De um lado, o representante dos
fazendeiros condenando as invasões de terra, culpando o governo
pela "leniência" diante de tais
ações e defendendo o lucro do
agronegócio. De outro, o representante dos trabalhadores rurais
enaltecendo a legitimidade das
"ocupações", pedindo pressa para o governo cumprir suas metas
e criticando a falta de visão social
do agronegócio.
Na quarta, a convite da Folha,
os presidentes das principais entidades sindicais dos setores ficaram lado a lado num restaurante
de Brasília -Antônio Ernesto de
Salvo, 71, da CNA (Confederação
da Agricultura e Pecuária do Brasil), e Manoel José dos Santos, 52,
da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Apesar de cordial, a conversa de cerca de uma hora foi divergente do início ao fim.
Em certo ponto, o presidente da
CNA se disse "estarrecido" com a
tese da Contag sobre as invasões.
Em outro, Santos atacou a mecanização do agronegócio em detrimento de empregos. Ambos, mas
de forma diferente, criticaram o
MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Ao término do almoço, dividiram uma garrafa de refrigerante.
Depois, trocaram cumprimentos
e posaram para fotos à beira do lago Paranoá. Ernesto de Salvo ganhou um chaveiro da Contag.
Abaixo, trechos da entrevista.
Folha - Meses atrás, o sr. disse estar preocupado com a leniência do
governo em relação às invasões de
terra. A preocupação continua?
Antônio Ernesto de Salvo -Certamente sim. A observância à lei
tem que ser um paradigma do
qual não podemos nos afastar.
Quanto mais benevolente que a
gente possa ser com um tipo de
ação como essa, que o Manoel
chamaria de ocupação, ela nitidamente não encontra respaldo legal. E depois que você quebra a lei,
nunca sabe onde pára.
Folha - As invasões são uma forma legítima de pressão?
Manoel José dos Santos - A única
coisa que justifica a ocupação de
terra é a ausência de uma reforma
agrária. É ruim ficar debaixo de
uma lona preta no sol agüentando
mosquito. Deitado, com um sapo
pulando por cima. Eu já vivi isso e
sei o quanto é ruim. O Brasil é um
país que tem uma dívida social
muito grande nessa área de distribuição fundiária, aí que vem a justificativa de os movimentos sociais se reunirem, formando o
processo de ocupação para provocar a ação do governo.
Folha - O sr. concorda que algumas ações são legítimas?
Ernesto de Salvo - Não. Não concordo. Se as pessoas começarem a
entrar porque acham que ali está
sobrando ou está mal usado, vira
desordem, que eu acho que prejudica a Contag. Porque, quando
você quebra a lei, não há mais limites. Amanhã haverá dissidência dos movimentos sociais brigando entre eles, vai virar a lei do
cão. A minha crítica é que isso
prejudica a reforma agrária.
Folha - Mas o sr. é a favor da reforma agrária?
Ernesto de Salvo - Lógico. Eu
chamo de reforma agrária o acesso à terra. O que existe no Brasil é
uma forma errada dos que têm
competência e capacidade de estabelecê-la. Não tem mecanismo,
não tem crédito, não tem política
rural, não tem assistência técnica
nem protecionismo do governo.
Então você fica num trabalho de
carregar água no balaio. O pequeno proprietário já existente talvez
seja o maior nicho de pobreza que
nós temos, dada a absoluta falta
de apoio público, aliada a condições precárias de educação e saúde. Esse quadro deve ser resolvido
e negociado com serenidade. A
quebra da lei não entra nisso.
Folha - Antes de ser eleito, Lula
disse que seria o único capaz de fazer uma reforma agrária tranqüila,
mas os números não mostram isso.
Inclusive as metas de assentamentos não têm sido cumpridas. Como
a Contag vê isso?
Santos - A situação é que os sucessivos governos não tiveram
políticas para enfrentar a reforma
agrária de frente. E o presidente
[Lula] quer, mas não está conseguindo fazer. O braço operador
do governo na reforma agrária é o
Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Temos um presidente novo, mas um
Incra velho. Isso não diminui a
responsabilidade do governo. O
que temos dito ao presidente e aos
ministros é que eles precisam resolver essa questão interna, porque quem paga o pato no final são
os trabalhadores que precisam da
reforma agrária.
Folha - E a questão das metas
não-cumpridas? É um fator adicional de acirramento?
Ernesto de Salvo - Frustrar a esperança das pessoas é uma maneira de acirrar os ânimos. Mas há
uma cobrança no andamento
dessas atividades do poder público que confronta com o Estado de
direito também. Você não pode
tomar de alguém e distribuir com
dignidade para outros, sem assegurar ao réu o direito de defesa.
Ou a reforma agrária é naturalmente um processo revolucionário radical, como a história ensina, ou é obrigatoriamente um
processo lento. É preciso respeitar
os direitos envolvidos.
Folha - Como a Contag avalia o direito de propriedade? Há limites
numa invasão de terra?
Santos - O direito de propriedade no Brasil é mais preservado do
que o direito à vida das pessoas.
Temos muito mais leis e instrumentos legais do Judiciário para
defender o interesse da propriedade do que os direitos humanos.
Se os trabalhadores fizessem a
ocupação de uma área para tomar
e expropriar essa área, nós poderíamos questionar a questão daquele cidadão que é o proprietário
e estaria sendo desrespeitado.
Mas no Brasil nós não temos expropriação. Há desapropriação
com indenização. Então é legítima a movimentação de quem
precisa de terra para trabalhar. É
claro que eu entendo que o doutor [Ernesto de Salvo] está no papel dele. Se eu fosse fazendeiro,
também teria essa posição.
Folha - O sr. avalia da mesma forma?
Ernesto de Salvo - Eu fico estarrecido. Claro que não justifica. Se
eu passo fome e tenho necessidade, passo então a ter o direito de
entrar em alguma coisa de outra
pessoa? Nós criamos um caldo de
cultura que não tem mais fim,
porque começa a invadir uma
propriedade com 10 mil hectares,
depois passa para 500, 200, até você invadir a casa do Manoel. Acaba prejudicando a idéia matriz,
que é o acesso à terra. Esse mesmo
que hoje trabalha como assentado, se progredir e crescer, amanhã
passará a ser objeto de ocupação.
Folha - E como a Contag passa a
realidade do campo aos seus filiados, como a questão da concentração de terras, por exemplo?
Santos - Na verdade, a origem da
concentração de terra é adversa.
Ela vem desde o processo da colonização, das sesmarias [permissão ao uso da terra a partir da criação do sistema das capitanias hereditárias, entre 1534 e 1536],
quando foram doadas grandes
extensões de terra para famílias
que nem compraram, e sim se
apossaram em cima de uma doação feita pelo imperador [rei de
Portugal]. E aí foram fazendo um
processo de transição entre as famílias. Esse é um segmento que
originou a principal base da concentração de terra.
Folha - A CNA concorda com essa
avaliação da Contag?
Ernesto de Salvo - Eu já fiz as
contas. Os capitães hereditários
teriam hoje cerca de 12 milhões de
descendentes como proprietários
rurais no Brasil, o que é mais do
que o Manoel quer. Sou contra o
culto da mediocridade, que, para
ser bom, tem de ser pequeno. Só
me recuso a achar que o problema
do Manoel é diferente do meu.
Folha - Há uma forte crítica dos
movimentos sociais em relação ao
agronegócio, à monocultura...
Santos - Do ponto de vista social,
a monocultura é uma coisa falida.
Do ponto de vista econômico, não
temos dúvida de que é um segmento que cresceu e segurou a
principal crise econômica, gerou
divisas. Acontece que, para diminuir os custos, eles diminuem o
número de empregos e aumentam a mecanização. No campo,
não há alternativas para quem
perde o emprego. O avanço tecnológico e a mecanização são importantes, desde que pensados no
conjunto do desenvolvimento.
Folha - Na avaliação da CNA, o
campo está acabando realmente
com o emprego como diz a Contag?
Ernesto de Salvo - Nós temos divergências ideológicas. E tem
uma mentira envolvida nisso: o
sujeito não planta soja porque exporta, e sim porque alguém compra dele e paga bem. Então, por
que esse preconceito?
Santos - Eu não tenho preconceito. Acontece só que o Brasil
real do qual o Antônio Ernesto fala é o Brasil que tem de tudo, é o
que vivemos no dia-a-dia, desde a
grande propriedade, que não é representada pela CNA, até a micro,
de gente que mora em dez hectares de terra numa região seca como o Nordeste. Nesse Brasil real
há essa megapropriedade que não
se preocupa se o mundo passa fome. A preocupação única é produzir e vender, sobretudo para o
mercado externo. O grande erro
do agronegócio não é buscar o lucro, mas não discutir qual é a sua
função. A riqueza que existe é em
detrimento dos pobres. Sem falar
do trabalho escravo.
Folha - E o MST? Como os senhores avaliam um movimento que
não existe juridicamente, mas se
tornou nos últimos anos o principal
enfoque da mídia?
Ernesto de Salvo - O Manoel é
que fala. São amigos dele.
Santos - Na verdade, a Contag é
a coordenadora oficial de um sistema sindical de trabalhadores
rurais, com 40 anos de estrada,
oficialmente estruturada. Aí está a
primeira diferença, pois o MST é
um movimento que tem pessoas
que participam, não é uma instituição. Mas todos podem apresentar suas propostas. Não concordamos com algumas práticas
do MST. Achamos que trabalhador não tem de brigar com trabalhador. E que uma ação que quebra patrimônio público, bens da
propriedade, não é uma ação que
podemos trabalhar com ela.
Ernesto de Salvo - E deixa eu falar logo o que eu penso do MST. É
um bacamarte fundiário. Ele é barulhento, violento e obsoleto.
Texto Anterior: Toda mídia - Nelson de Sá: Os EUA e o Brasil Próximo Texto: Outro lado: Modernidade da CNA é devastação, afirma sem-terra Índice
|