São Paulo, segunda-feira, 11 de outubro de 2004

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ENTREVISTA DA 2ª

CNA pede subsídios e vê "leniência" do governo com invasões; Contag diz que falta visão social no setor

MANOEL JOSÉ DOS SANTOS E ANTÔNIO ERNESTO DE SALVO

Incentivos ao agronegócio opõem ruralista e agricultor

EDUARDO SCOLESE
JULIA DUAILIBI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

De um lado, o representante dos fazendeiros condenando as invasões de terra, culpando o governo pela "leniência" diante de tais ações e defendendo o lucro do agronegócio. De outro, o representante dos trabalhadores rurais enaltecendo a legitimidade das "ocupações", pedindo pressa para o governo cumprir suas metas e criticando a falta de visão social do agronegócio.
Na quarta, a convite da Folha, os presidentes das principais entidades sindicais dos setores ficaram lado a lado num restaurante de Brasília -Antônio Ernesto de Salvo, 71, da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), e Manoel José dos Santos, 52, da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Apesar de cordial, a conversa de cerca de uma hora foi divergente do início ao fim.
Em certo ponto, o presidente da CNA se disse "estarrecido" com a tese da Contag sobre as invasões. Em outro, Santos atacou a mecanização do agronegócio em detrimento de empregos. Ambos, mas de forma diferente, criticaram o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Ao término do almoço, dividiram uma garrafa de refrigerante. Depois, trocaram cumprimentos e posaram para fotos à beira do lago Paranoá. Ernesto de Salvo ganhou um chaveiro da Contag. Abaixo, trechos da entrevista.
 

Folha - Meses atrás, o sr. disse estar preocupado com a leniência do governo em relação às invasões de terra. A preocupação continua?
Antônio Ernesto de Salvo -
Certamente sim. A observância à lei tem que ser um paradigma do qual não podemos nos afastar. Quanto mais benevolente que a gente possa ser com um tipo de ação como essa, que o Manoel chamaria de ocupação, ela nitidamente não encontra respaldo legal. E depois que você quebra a lei, nunca sabe onde pára.

Folha - As invasões são uma forma legítima de pressão?
Manoel José dos Santos -
A única coisa que justifica a ocupação de terra é a ausência de uma reforma agrária. É ruim ficar debaixo de uma lona preta no sol agüentando mosquito. Deitado, com um sapo pulando por cima. Eu já vivi isso e sei o quanto é ruim. O Brasil é um país que tem uma dívida social muito grande nessa área de distribuição fundiária, aí que vem a justificativa de os movimentos sociais se reunirem, formando o processo de ocupação para provocar a ação do governo.

Folha - O sr. concorda que algumas ações são legítimas?
Ernesto de Salvo -
Não. Não concordo. Se as pessoas começarem a entrar porque acham que ali está sobrando ou está mal usado, vira desordem, que eu acho que prejudica a Contag. Porque, quando você quebra a lei, não há mais limites. Amanhã haverá dissidência dos movimentos sociais brigando entre eles, vai virar a lei do cão. A minha crítica é que isso prejudica a reforma agrária.

Folha - Mas o sr. é a favor da reforma agrária?
Ernesto de Salvo -
Lógico. Eu chamo de reforma agrária o acesso à terra. O que existe no Brasil é uma forma errada dos que têm competência e capacidade de estabelecê-la. Não tem mecanismo, não tem crédito, não tem política rural, não tem assistência técnica nem protecionismo do governo. Então você fica num trabalho de carregar água no balaio. O pequeno proprietário já existente talvez seja o maior nicho de pobreza que nós temos, dada a absoluta falta de apoio público, aliada a condições precárias de educação e saúde. Esse quadro deve ser resolvido e negociado com serenidade. A quebra da lei não entra nisso.

Folha - Antes de ser eleito, Lula disse que seria o único capaz de fazer uma reforma agrária tranqüila, mas os números não mostram isso. Inclusive as metas de assentamentos não têm sido cumpridas. Como a Contag vê isso?
Santos -
A situação é que os sucessivos governos não tiveram políticas para enfrentar a reforma agrária de frente. E o presidente [Lula] quer, mas não está conseguindo fazer. O braço operador do governo na reforma agrária é o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Temos um presidente novo, mas um Incra velho. Isso não diminui a responsabilidade do governo. O que temos dito ao presidente e aos ministros é que eles precisam resolver essa questão interna, porque quem paga o pato no final são os trabalhadores que precisam da reforma agrária.

Folha - E a questão das metas não-cumpridas? É um fator adicional de acirramento?
Ernesto de Salvo -
Frustrar a esperança das pessoas é uma maneira de acirrar os ânimos. Mas há uma cobrança no andamento dessas atividades do poder público que confronta com o Estado de direito também. Você não pode tomar de alguém e distribuir com dignidade para outros, sem assegurar ao réu o direito de defesa. Ou a reforma agrária é naturalmente um processo revolucionário radical, como a história ensina, ou é obrigatoriamente um processo lento. É preciso respeitar os direitos envolvidos.

Folha - Como a Contag avalia o direito de propriedade? Há limites numa invasão de terra?
Santos -
O direito de propriedade no Brasil é mais preservado do que o direito à vida das pessoas. Temos muito mais leis e instrumentos legais do Judiciário para defender o interesse da propriedade do que os direitos humanos. Se os trabalhadores fizessem a ocupação de uma área para tomar e expropriar essa área, nós poderíamos questionar a questão daquele cidadão que é o proprietário e estaria sendo desrespeitado. Mas no Brasil nós não temos expropriação. Há desapropriação com indenização. Então é legítima a movimentação de quem precisa de terra para trabalhar. É claro que eu entendo que o doutor [Ernesto de Salvo] está no papel dele. Se eu fosse fazendeiro, também teria essa posição.

Folha - O sr. avalia da mesma forma?
Ernesto de Salvo -
Eu fico estarrecido. Claro que não justifica. Se eu passo fome e tenho necessidade, passo então a ter o direito de entrar em alguma coisa de outra pessoa? Nós criamos um caldo de cultura que não tem mais fim, porque começa a invadir uma propriedade com 10 mil hectares, depois passa para 500, 200, até você invadir a casa do Manoel. Acaba prejudicando a idéia matriz, que é o acesso à terra. Esse mesmo que hoje trabalha como assentado, se progredir e crescer, amanhã passará a ser objeto de ocupação.

Folha - E como a Contag passa a realidade do campo aos seus filiados, como a questão da concentração de terras, por exemplo?
Santos -
Na verdade, a origem da concentração de terra é adversa. Ela vem desde o processo da colonização, das sesmarias [permissão ao uso da terra a partir da criação do sistema das capitanias hereditárias, entre 1534 e 1536], quando foram doadas grandes extensões de terra para famílias que nem compraram, e sim se apossaram em cima de uma doação feita pelo imperador [rei de Portugal]. E aí foram fazendo um processo de transição entre as famílias. Esse é um segmento que originou a principal base da concentração de terra.

Folha - A CNA concorda com essa avaliação da Contag?
Ernesto de Salvo -
Eu já fiz as contas. Os capitães hereditários teriam hoje cerca de 12 milhões de descendentes como proprietários rurais no Brasil, o que é mais do que o Manoel quer. Sou contra o culto da mediocridade, que, para ser bom, tem de ser pequeno. Só me recuso a achar que o problema do Manoel é diferente do meu.

Folha - Há uma forte crítica dos movimentos sociais em relação ao agronegócio, à monocultura...
Santos -
Do ponto de vista social, a monocultura é uma coisa falida. Do ponto de vista econômico, não temos dúvida de que é um segmento que cresceu e segurou a principal crise econômica, gerou divisas. Acontece que, para diminuir os custos, eles diminuem o número de empregos e aumentam a mecanização. No campo, não há alternativas para quem perde o emprego. O avanço tecnológico e a mecanização são importantes, desde que pensados no conjunto do desenvolvimento.

Folha - Na avaliação da CNA, o campo está acabando realmente com o emprego como diz a Contag?
Ernesto de Salvo -
Nós temos divergências ideológicas. E tem uma mentira envolvida nisso: o sujeito não planta soja porque exporta, e sim porque alguém compra dele e paga bem. Então, por que esse preconceito?
Santos - Eu não tenho preconceito. Acontece só que o Brasil real do qual o Antônio Ernesto fala é o Brasil que tem de tudo, é o que vivemos no dia-a-dia, desde a grande propriedade, que não é representada pela CNA, até a micro, de gente que mora em dez hectares de terra numa região seca como o Nordeste. Nesse Brasil real há essa megapropriedade que não se preocupa se o mundo passa fome. A preocupação única é produzir e vender, sobretudo para o mercado externo. O grande erro do agronegócio não é buscar o lucro, mas não discutir qual é a sua função. A riqueza que existe é em detrimento dos pobres. Sem falar do trabalho escravo.

Folha - E o MST? Como os senhores avaliam um movimento que não existe juridicamente, mas se tornou nos últimos anos o principal enfoque da mídia?
Ernesto de Salvo -
O Manoel é que fala. São amigos dele.
Santos - Na verdade, a Contag é a coordenadora oficial de um sistema sindical de trabalhadores rurais, com 40 anos de estrada, oficialmente estruturada. Aí está a primeira diferença, pois o MST é um movimento que tem pessoas que participam, não é uma instituição. Mas todos podem apresentar suas propostas. Não concordamos com algumas práticas do MST. Achamos que trabalhador não tem de brigar com trabalhador. E que uma ação que quebra patrimônio público, bens da propriedade, não é uma ação que podemos trabalhar com ela.
Ernesto de Salvo - E deixa eu falar logo o que eu penso do MST. É um bacamarte fundiário. Ele é barulhento, violento e obsoleto.

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