São Paulo, quinta, 12 de março de 1998

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CELSO PINTO
Os perigos que vêm da Rússia

Quando alguém pergunta na Fazenda ou no Banco Central de onde ainda pode vir confusão no mercado internacional, a resposta é rápida: da Rússia. Com reservas equivalentes a pouco mais de dois meses de importações, que podem virar pó se os investidores externos venderem os estimados US$ 12 bilhões em títulos do governo (GKO) que possuem, e uma intermitente queda de braço com o FMI, a Rússia entrou no olho do furacão.
Maxim Boicko, ex-ministro da Privatização da Rússia, contudo, discorda. O maior perigo, a seu ver, não é o de um colapso externo, já afastado. O verdadeiro risco está no coração da relação entre negócios e poder na nova Rússia.
Os seis ou sete grandes grupos que cresceram às custas de favores e na sombra do poder, querem se confundir com o governo, limitar a presença dos investidores externos e impedir que se consolidem as regras de um capitalismo mais competitivo. "O risco político real é se não houver transparência na relação entre os grandes grupos financeiros e o governo", alerta Boicko.
A crise asiática bateu pesado na Rússia, num roteiro algo parecido ao seguido pelo Brasil. A bolsa russa, que havia se valorizado mais de 300% no ano e meio anterior à crise, perdeu todo o ganho. Investidores venderam GKOs e as reservas chegaram a apenas US$ 11 bilhões. Para defender o rublo, os russos subiram as taxas de juros de 22% para até 42%, no final de janeiro.
Ao mesmo tempo, a discussão de um programa com o FMI de US$ 9,8 bilhões (em três anos) empacou na relutância russa em aprovar uma reforma fiscal e um orçamento federal decente para 98. No ano passado, o orçamento previa um déficit de 5,4% do PIB, mas ele ficou em 7,6%. Para piorar, a queda do preço do petróleo gerou, em outubro, o primeiro déficit na balança comercial em vários anos.
Apesar de tudo, o governo segurou o rublo, as reservas melhoraram, alguns investidores em GKOs voltaram e os juros de longo prazo já caíram para 25%. Boicko acha que o país passou no teste e, se houver outros, também passará.
Os novos bilionários
A complicação russa, contudo, não acaba aí. Boicko é um jovem economista (38 anos), que de 92 a 97 esteve no governo em postos ligados à privatização e a Anatoli Tchubais, vice primeiro-ministro russo, considerado um bastião reformista do governo de Boris Ieltsin. Boicko, hoje no setor privado, veio esta semana ao Brasil a convite do Banco Crédit Agricole Indosuez.
Tchubais e Boicko estiverem envolvidos nas brigas dos novos bilionários russos. Em 95, Tchubais ajudou a formar alguns grandes grupos, num esquema de privatização em que empréstimos eram trocados por ações de grandes estatais a preço de banana. Foi demitido (para voltar mais tarde), mas alguns desses grupos ajudaram a reeleger Ieltsin em 96.
O suposto maior protegido de Tchubais é o Uneximbank, de Vladimir Potanin. O mesmo grupo que acabou arrematando, ano passado, 25% das ações leiloadas da empresa de telecomunicações Sviazinvest. Um dos novos bilionários russos, Boris Berezovski, dono de um império que inclui bancos, petróleo e mídia, foi contra o leilão e queria uma venda barata para grupos amigos.
Em novembro, Tchubais conseguiu derrubar Berezovski do cargo que ocupava no Conselho de Segurança do governo. Semanas depois, a mídia de Berezovski publicou que Tchubais e quatro assessores, entre eles Boicko, estavam recebendo US$ 90 mil cada um para escrever um livro sobre privatização. O dono da editora era o Uneximbank. Mesmo não sendo ilegal, o pagamento era altíssimo para os padrões russos. Tchubais ficou, mas os quatro assessores, inclusive Boicko, foram demitidos.
O próprio Boicko admite que a privatização, um "processo político", ajudou a favorecer alguns grupos. Numa primeira fase, em 92, venderam-se pequenas empresas. Em 93 e 94, foram distribuídos vales à população, virtualmente de graça, que podiam ser trocados por ações das estatais, ou por cotas de fundos de privatização. Boicko diz que muita gente se decepcionou: além de não ter liquidez, a maioria das ações rendeu até agora pouco ou nada. Ele argumenta que as expectativas eram irrealistas: sem a privatização essas empresas, provavelmente, estariam fechadas hoje.
A partir de 95, algumas privatizações de maior porte, no esquema de "empréstimos por ações", ajudaram a formar grupos bilionários. Boicko calcula que 80% das indústrias já foram privatizadas, mas sobraram empresas muito importantes. A venda do gigante petrolífero Rosneft, em um ou dois meses, será um teste crucial para conferir se a venda será competitiva e aberta ao capital externo.
Boicko diz que é um "milagre" o fato de a transição russa ter acontecido sem um trauma como uma guerra civil e sem uma crise social de maiores proporções. Falta, contudo, muito a fazer. Ele calcula que 40% da economia russa vive nas sombras e não paga impostos. Os direitos dos minoritários são largamente ignorados e os investidores externos têm uma presença irrisória.
As estatísticas não significam muito. O PIB russo oficial caiu vários anos seguidos, diz Boicko, enquanto o número de carros por mil habitantes se multiplicou por três a quatro vezes, o que não faz sentido.
Boicko não vê o risco da volta do comunismo. O perigo é o de se consolidar um capitalismo fechado. À revelia do que pensa, hoje, Ieltsin.




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