|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Filme mostra transformação da favela em front do crime
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
"Cidade de Deus", de Fernando Meirelles e Katia Lund, é antes de tudo um filme político. É
possível enumerar vários problemas cinematográficos e ideológicos na realização, mas o principal e mais urgente está exposto:
trata-se uma saga ambiciosa que
narra como uma favela se transformou progressivamente num
front do crime organizado e
num espaço de violência incontrolável.
Alguns espectadores vão reclamar que os diretores espetacularizam demais as situações, transformando a questão complexa
da marginalização social numa
espécie de "thriller" violento.
Poderão dizer que o conflito
central, de um jovem que tenta
escapar do círculo vicioso do crime, é por demais esquemático.
Argumentarão ainda que "Cidade de Deus" circunscreve muito
as situações ao mundo da favela,
dando a impressão de que a violência se auto-engendra sem ter
fundamento no processo econômico-social brasileiro.
É preciso lembrar, porém, que
os diretores adotam a forma do
filme realista de grande público,
mesmo que não sigam todas as
suas regras e tenham filmado
com liberdade e inspirados por
uma sincera preocupação social.
A geração de Meirelles e Lund
é a do pós-Cinema Novo, e suas
referências são sobretudo o naturalismo urbano de Hector Babenco (em "Pixote"), o neoclassicismo truncado e histérico de
Martin Scorsese (em "Os Bons
Companheiros") e o filme "antropológico" de Ken Loach.
Ajunte-se a isso algo da prática
publicitária e televisiva de Meirelles e se chegará à estética do filme, que pouco tem de "Os Esquecidos", de Buñuel, mas vai
comover o público pela crueza e
a força da encenação e a performance vibrante e memorável
dos atores, a maioria formada de
amadores.
O filme, exibido com sucesso
no último Festival de Cannes, foi
baseado no livro homônimo e de
alguma forma autobiográfico de
Paulo Lins sobre um grupo de
amigos na favela Cidade de
Deus, no Rio de Janeiro, em três
épocas (anos 60, 70 e 80).
Cada época foi filmada diferentemente, na forma do plano,
da fotografia, da encenação e da
montagem, mas sem pôr em risco a unidade do conjunto, garantida também pelo ótimo roteiro
de Bráulio Mantovani.
Ficção
Assim, "Cidade de Deus" é antes de tudo uma ficção sobre alguns garotos e sua passagem da
infância à juventude e à maturidade, num mundo marginalizado em que a violência se torna
cada vez mais regra social e linguagem dominante.
É também a respeito da "formação econômica" do tráfico de
drogas nas favelas e, portanto,
uma genealogia do crime organizado. É sobretudo um filme moralizante sobre a capacidade de
resistência de um indivíduo ao
seu próprio meio.
A ficção "fechada" de Meirelles
e Lund pode dar impressão de
que tudo está circunscrito ao
mundo da favela e de que a violência, mais do que expressão da
revolta social, é uma espécie de
patologia de sujeitos fora da lei.
O público sabe que não é bem
assim. O que não está no filme,
está na realidade. Por isso ele é
político e necessário: incita ao
olhar comprometido. Triste daquele espectador que, ao sair da
sessão, não se tocar, graças à "Cidade de Deus", sobre a sua parte
de responsabilidade na produção cotidiana da injustiça social e
da violência no Brasil.
Texto Anterior: No Escurinho do Cinema: FHC vê "Cidade de Deus", mas não fala de eleição Próximo Texto: Entrevista da 2ª: Ajuda do FMI só adia colapso, diz britânico Índice
|