São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JANIO DE FREITAS
A condenação do juiz

O assassinato do juiz Leopoldino Marques do Amaral tem várias causas e inúmeros co-autores. Suas denúncias de envolvimento de desembargadores e juízes de Mato Grosso em crimes diversos, inclusive o narcotráfico, e os responsáveis diretos pelo assassinato são apenas uma parte da tragédia.
Tem toda razão o filho do juiz Marques do Amaral ao dizer que o assassinato de seu pai poderia ser evitado. O juiz levou as denúncias às chamadas autoridades judiciais e governamentais, levou-as à CPI do Judiciário, levou-as aos jornais e à TV. Só lhe restou a última das denúncias possíveis, feita para os mesmos destinatários: a de que sua vida estava em perigo iminente, já sob ameaças objetivas. O cuidado dispensado às denúncias e à sua vida, no entanto, foi o mesmo: nenhum.
O destino das denúncias de corrupção, seja esta de que gênero for, no Brasil não varia. Os brasileiros falam muito na impunidade, como se fosse a resultante de um desleixo na aplicação da lei ou de uma complacência de compadrio nas cúpulas de governos, no Congresso, no Judiciário mesmo. Quem dera fosse apenas isso. As denúncias não produzem os efeitos devidos porque a repulsa não é ao fato denunciado, mas à ocorrência de uma denúncia.
É nítida, é grosseiramente sem-cerimoniosa a raiva despertada por denúncias naqueles que deveriam acatá-las logo, providenciar sua verificação, estimular o possível aprofundamento e, se for o caso, encaminhar um material sério e substancioso às necessárias consequências legais. Nessa reação invertida, os governos brasileiros e seus integrantes têm sido milimetricamente iguais.
A aceitação dos atos denunciados não é só praticada pelos que têm o dever do rigor, é também exigida por eles aos que não a admitem. Embora quase superficiais, dois casos recentes ilustram a exigência imoral.
As manobras para deformar a privatização da telefonia não indignaram, mas a sua denúncia levantou a ira do próprio presidente da República e, atrás dele, dos seus aliados políticos e empresariais. Usar aviões do serviço público militar para turismo, ou fazê-lo 340 vezes para transporte doméstico, como fez Clóvis Carvalho, não provoca nem sequer estranheza, mas denunciar o abuso ilegal provoca insultos do presidente-sociólogo, que afinal baixa um ato antiético para dar ares de legalidade ao privilégio que não a tem.
A ira provocada pela denúncia recai, é claro, sobre o autor. A hostilidade que se volta contra o jornalista que noticia fraudes, negociatas, compra de votos, e outros usos, chega até o ódio e se manifesta como tal. E não só por parte dos atingidos pessoalmente. Autores dessas notícias passam a ser considerados inimigos dos governistas, estejam eles no governo, no empresariado, na universidade ou no restaurante. O silêncio conivente e a mentira são muito bem vistos.
O Brasil entrou na lista dos países onde mais jornalistas têm sido sofrido atentados fatais. Esse não é, porém, um assunto que suscite maior interesse nem mesmo dos meios de comunicação. E não porque se trate de jornalistas, mas por ser assunto de relevância menor na temática brasileira. Ou, do contrário, o Brasil não estaria no destaque entre os países de maior número de testemunhas que, deixadas à mercê da sorte, são mortas por vingança.
Nos últimos anos, a reação feroz a denúncias de qualquer forma de corrupção extravasou dos governos. Tornaram-se frequentes, nos jornais, as cartas de fernandistas exaltados contra o que chamam de denuncismo. Uma atitude que conquistou pronta adesão de jornalistas cujos interesses não têm a ver com jornalismo. Mas, por partidarismo ou por mercantilismo, uns e outros estão externando a capacidade, tão disseminada no Brasil, de abrir mão do rigor e da moralidade por alguma conveniência.
O juiz Leopoldino Marques do Amaral foi atingido por uma bala na nuca, outra em um ouvido. Mas já estava sobrevivendo precariamente, condenado à sorte indefesa pelo repúdio, seja manifestado com descaso ou com ira, que as denúncias de qualquer corrupção provocam no Brasil. E as suas eram muito graves.


Texto Anterior: Oposição: Manifesto critica governo de FHC
Próximo Texto: Oposições: "Fora FHC" racha PT em congresso
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.