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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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CONFLITO AGRÁRIO

Em SP, as cem famílias registradas no balanço do governo Lula foram assentadas pelo governo do Estado

"Lula só matou a fome dele. O governo não deu um real para manter as famílias no campo", diz prefeito

Lula repete FHC e infla números da reforma agrária

FABIO SCHIVARTCHE
DO PAINEL
RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL AO PONTAL DO PARANAPANEMA (SP)

Surpresa, a ex-sem-terra Maria Bispo do Nascimento, 43, abre um sorriso. "A TV fala muita coisa. A realidade é bem outra." Seu marido, Adolfo do Nascimento, 50, que se declara fã do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também parece se divertir com a notícia. "Isso é conversa. O Lula não era nada na época, não era presidente, como ele podia ter feito esse assentamento?".
Maria e Adolfo vivem desde dezembro de 2001 no projeto de assentamento Repouso, em Mirante do Paranapanema (SP). A terra, devoluta, foi arrecadada pelo governo de São Paulo, que abriu as estradas e acabou de instalar a energia elétrica.
Até 2002, por meio de um convênio, o governo estadual recebia uma ajuda da União para custear apenas parte da criação do assentamento, a indenização das eventuais benfeitorias dos fazendeiros que ocupavam as terras devolutas. O convênio venceu em dezembro, mas o governo Lula ainda não o renovou nem repassou recursos para indenizações.
O casal Nascimento não recebeu um real do Ministério do Desenvolvimento Agrário ou sequer uma visita de um técnico do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Nada disso impediu que o balanço dos seis primeiros meses de realizações do governo Lula na reforma agrária, divulgado em Brasília em 27 de junho último, incluísse o casal entre as 2.534 famílias supostamente assentadas no período de janeiro a junho.
O artifício contábil que "assentou" os Nascimento se estende a dezenas de ex-sem-terra. Em São Paulo, todas as cem famílias "assentadas" no balanço do governo Lula na verdade o foram pelo Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), na gestão de Geraldo Alckmin (PSDB). O governo federal reconheceu que houve falha nesse caso.
Levantamento feito pela Folha a partir do balanço oficial indica que pelo menos 512 famílias (cerca de 20,3% do total do primeiro semestre) foram atendidas com dinheiro e iniciativas dos governos de São Paulo e do Maranhão.

Os "siprados"
O levantamento aponta que o governo Lula está utilizando estratégia semelhante à adotada pelo governo Fernando Henrique Cardoso para ter dito que "assentou" mais de 630 mil famílias no período 1995-2002: contagem dos assentados atendidos por Estados e municípios, de áreas sem qualquer infra-estrutura, de "assentados" que ainda não estão nas terras e de pessoas que já vivem há décadas nos mesmo lugares.
O balanço sobre o Maranhão registra 584 famílias assentadas pelo governo federal no primeiro semestre de 2003. Mas o próprio Incra maranhense trabalha com outro número, 172.
O procurador e assessor da superintendência do Incra maranhense, José Ribamar Reis Freire, procura ser didático na explicação: "Eles [Brasília] estão contando o pessoal do Estado aí no meio. Porque até o governo passado, quando o Incra reconhecia terras do Estado, podia contabilizar como metas do Incra. Neste ano, como até hoje não recebemos [orientação] se pode ou não pode [ser feito], eu, pelo menos, não estou contabilizando".
Freire também aponta possível motivo pelo qual o governo toma para sua contabilidade as famílias atendidas pelo Estado: "O Incra reconhece essas famílias e as joga para o nosso sistema. Como elas são lançadas no sistema do Incra, que é o Sipra, elas vão aparecer como realizadas pelo Incra. Porque para eles [famílias] terem acesso a crédito na Caixa Econômica, acesso à moradia, eles têm de estar cadastrados no Incra. Então vão aparecer na contagem da meta do Incra como número de famílias realizadas. Mas aqui [Maranhão] a gente separa o que é do Estado e o que é do Incra".
O Sipra mencionado por Freire é o Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária. Trata-se de um controle virtual, que não leva em conta se o beneficiado está ou não na área.
No balanço oficial do governo Lula, nada é dito sobre famílias "sipradas", como se chamam, no jargão dos funcionários do órgão, aquelas que integram o cadastro virtual do Incra.
Indagada sobre a informação de que os assentamentos de São Paulo listados como do governo federal em 2003 foram feitos pelo governo estadual, a Superintendência do Incra de São Paulo enviou uma nota lacônica: "Os assentamentos Vista Alegre, Repouso, Guaná-Mirim e Santa Angelina são do Itesp". Dias depois, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, admitiu falha na contagem de São Paulo.

Fora da área
No Rio Grande do Sul, dois dos projetos que o governo Lula diz ter criado só começam a ser possíveis porque houve aporte financeiro do governo gaúcho.
Em Aceguá (RS), o custo da aquisição de uma área de 409 hectares foi dividido ao meio entre Estado e União, cabendo a cada um R$ 171,3 mil. Mas nada disso é mencionado no balanço federal.
No Estado há indicativo de que o governo tem contado como "assentamentos" áreas onde, na realidade, nem existem trabalhadores rurais sem terra. "Nada está definido. Não há definição de que famílias ocuparão os lotes", informou a assessoria de comunicação do Incra gaúcho.
"Ainda não houve a renovação do convênio com o Incra. Não fizemos nenhum assentamento neste ano", contou o chefe de gabinete do Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo do governo estadual, Flávio Santos.
Para justificar essa contagem, o governo pode se valer da portaria número 80, baixada em abril de 2002 pelo então ministro do Desenvolvimento Agrário, José Abrão, três dias depois da primeira reportagem publicada pela Folha sobre a inflação de números nos balanços da reforma agrária.
Pela portaria, duramente criticada por representantes sindicais dos funcionários do Incra, terrenos vazios e famílias apenas cadastradas já passam a ser considerados "assentamentos" e "assentadas" da reforma agrária.
Na Bahia, onde os assentamentos de 2003 efetivamente são do governo federal, há muitas reclamações sobre a falta de infra-estrutura. Em Morpará (170 famílias assentadas neste ano), está havendo um refluxo, com assentados indo embora por falta de condições, segundo o sindicato dos trabalhadores rurais do município. "Até agora, Lula só matou a fome dele. O governo não deu um real para criar condições de manter as famílias no campo", criticou o prefeito, Felisberto Filho (PFL).
No assentamento de Mirante do Paranapanema (SP), o casal Nascimento, que se divertiu ao saber ter sido "assentado" pelo governo Lula, vive realidade diferente. Após dois anos de dificuldades, hoje conta com gado e benfeitorias que valeriam cerca de R$ 100 mil. Esse progresso não se deveu a nenhum apoio federal, mas a empréstimos pessoais e trabalho. "Votei no Lula e ainda acredito nele, mas aqui não teve ajuda dele", diz Adolfo Nascimento.


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