São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JANIO DE FREITAS

Pelo inverso

Outros bons exemplos não faltaram jamais, mas a novela estrelada por Fernandinho Beira-Mar é incomparável e definitiva, na síntese da demonstração de quanto é irracional e inverso todo o tratamento dado aos problemas da criminalidade organizada.
Para começar, uma situação quase inacreditável, em dois tempos. O governo fluminense vai processar, por obstrução a uma ordem superior, os guardas penitenciários que se postaram como barreira para impedir a invasão da penitenciária Bangu 1. Mas foi à atitude desses guardas -corrompidos, como afirma o secretário de Segurança, professor Roberto Aguiar, e pouco letrados- que se ficou devendo a solução pacífica do conflito, sem as mortes esperadas da invasão aprovada pelos doutores secretários e pelo que ocupa a Presidência da República.
E o que levou Fernandinho Beira-Mar àquela penitenciária? Quase inacreditável, também: um entendimento entre o Judiciário, na pessoa de um juiz de Brasília, e o Ministério da Justiça. Como a Polícia Federal não mais quisesse Beira-Mar em seu cárcere brasiliense, o juiz mandou-o para o Rio, por ser este o território de seus crimes e condenações. Os secretários de Justiça e Segurança fluminenses recorreram ao então ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., mas Fernandinho Beira-Mar foi mesmo mandado ao encontro dos seus lugar-tenentes e dos seus domínios criminais -decisão, não é demais repetir, do Judiciário e do governo. Pormenor interessante: Beira-Mar não é só criminoso estadual. É também federal, acusado de contrabando de armas para a Colômbia, em troca de cocaína. Estava muito apropriadamente em Brasília, aos cuidados da PF.
E por que candidatos à Presidência, só por sê-lo, têm que ser perguntados a respeito de tudo e a tudo se acham capazes de responder? Luiz Inácio Lula da Silva, segundo o noticiário no decorrer da rebelião, prontamente estimula a decisão da governadora Benedita da Silva pela entrada da PM à força na penitenciária. Com base em quê? Não foi dito, nem se pode imaginar.
Se a histeria em que ficam as chamadas autoridades de segurança nos momentos críticos, sempre ansiosas por afirmar esta autoridade em detrimento da reflexão e do bom senso, deve ser combatida e não, como faz a mídia, estimulada.
Posto diante do mesmo interesse enganadamente jornalístico, José Serra não faltou com sua firmeza de conhecimento: a criminalidade disseminou-se no Rio porque o Rio "assim o quis". O candidato disse tamanha bobagem porque assim o quis. Caso não pudesse dispensar-se da grosseria, como candidato à Presidência conviria saber que a criminalidade pode ser mais alarmante no Rio ou, de repente, em outro lugar, mas dissemina-se por todo o país. Com boa parte da responsabilidade localizada nos planos como o Nacional de Segurança e outros que nunca passaram de farsas, com verbas que ficam retidas até se transformarem em juros rendosos para melhor concentração da riqueza e maior distribuição da violência em suas variadas formas.
No Orçamento da União figuram, incluídas pelo governo e aprovadas pelo Congresso, dotações de que vale a pena citar dois casos relacionados com episódios como o de Bangu 1 e que falam pelos demais:
-verba orçamentária para "Implantação do sistema de informações penitenciárias": R$ 4 milhões. Já liberado pelo governo para aplicação: zero.
-verba para "Implantação do sistema de acompanhamento de polícias": R$ 4,9 milhões. Liberados para aplicação: R$ 6.100, ou seja, 0,13%.
-verba para "Reaparelhamento de polícias estaduais e guardas municipais": R$ 48,8 milhões. Liberados para aplicação: R$ 54 mil, ou seja, 0,11%.
-verba para "Capacitação de agentes carcerários": R$ 4 milhões. Liberado para aplicação: zero.
E vai por aí. São dados do próprio Sistema Integrado de Administração Financeira do governo, em 4 de agosto, recolhidos pelo deputado Agnelo Queiroz.
É assim porque o governo "assim o quis".


Texto Anterior: Questão Agrária: Justiça nega pedido para libertar Rainha
Próximo Texto: Governo: FHC tenta derrubar "mitos" sobre ação na área social
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.