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LANTERNA NA POPA
Armadilhas semânticas
ROBERTO CAMPOS
Há palavras que se tornam venenosas, por transmitirem sinalizações equivocadas. Uma dessas expressões é "reserva cambial". Embalamo-nos com uma
falsa sensação de segurança
quando nossas "reservas" atingiram US$ 74 bilhões. A ilusão
proveio de pensarmos que tínhamos "reservas", quando tínhamos apenas "recursos".
As reservas confiáveis são as
que resultam de saldos no comércio de mercadorias e serviços, de investimentos diretos em
instalações e equipamentos ou
mesmo de empréstimos a longo
prazo. As reservas de alguns países emergentes como a China
Continental ou Taiwan são desse tipo. No caso brasileiro, ao
contrário, a aparente folga cambial vinha principalmente de investimentos porta-fólio, em
ações de bolsa de títulos de prazo fixo, em resposta a juros altos
ou percepções de rentabilidade
imediata. Trata-se de capital
volátil. Empréstimos externos
de curto prazo são também "recursos", porém não "reservas".
O paradoxo brasileiro, claramente visível, na conjuntura de
"aversão ao risco" criada pela
crise russa, é que éramos um
país de elevados "recursos" e
magras "reservas cambiais". A
armadilha semântica produziu
sinalizações equivocadas. Após
as crises do México (1995) e da
Ásia (1987), tivemos a agradável
surpresa de reconstituirmos rapidamente, com o atrativo de
juros altos, nossas "reservas"
cambiais. Doce e ledo engano!
Tínhamos absorvido "recursos",
mas não acumulado "reservas".
O indicador perigoso, que deveria ser o sinal de alarme, era o
crescente déficit em conta corrente, oriundo principalmente
do saldo negativo no intercâmbio de bens e serviços.
Essa ilusão de ótica fez com
que o Brasil sobreestimasse o
tempo disponível de travessia,
praticando uma mistura de gradualismo cambial e frouxidão
fiscal. Somente quando o colapso russo despertou na finança
internacional uma anormal
"aversão ao risco" é que nos
conscientizamos dramaticamente da diferença entre "reserva" e "recurso". Os juros altos
passaram do fator de "atração"
a fator de "intimidação" pelo
seu impacto implosivo sobre a
dívida pública. O medo passou a
superar a ganância.
Há outras armadilhas semânticas, como por exemplo a falsa
identidade entre "empresa pública" e "patrimônio público",
que gera irracional resistência à
privatização. É que as empresas
públicas há muito deixaram de
ser "patrimônio público". Já foram privatizadas, não em favor
do grande público do setor privado, e sim da burguesia estatal.
As chamadas "jóias da coroa",
como a Vale do Rio Doce e a Petrossauro, só se enquadrariam
no conceito de patrimônio público se: a) houvesse uma gestão
participativa em que o público
se fizesse representar significativamente e b) pagassem apetitosos dividendos ao Tesouro, como representante dos acionistas
contribuintes. Nada disso acontecia ou acontece, com as estatais. Elas são geridas por uma
aliança informal entre políticos
e tecnocratas, para os quais o
"bem comum" é figura de retórica e não uma missão apostólica.
As doações anuais das estatais
aos seus fundos de pensão excedem de muito os dividendos pagos (quando são pagos) ao Tesouro. E esses fundos criam em
favor dos "burgueses do Estado"
uma série de privilégios, que os
transforma numa nova classe,
comparável sob muitos aspectos
à "nomenklatura" dos países socialistas. Entre esses privilégios
se incluem uma garantia formal
e informal de emprego, aposentadorias generosas e precoces,
serviços de assistência à saúde
indisponíveis ao grande público, empréstimos subvencionados etc.
O que na discussão corrente se
chama de "alienação do patrimônio público pela privatização" não é mais do que uma
substituição de beneficiários.
Em vez de serem estes os burgueses do Estado, que desfrutam do
poder sem correr riscos, passam
a ser agentes produtivos do setor
privado, que aplicam poupanças e correm riscos.
Cumpre não esquecer ainda
que, quando o governo privatiza
empresas, mantém uma espécie
de "privilégio do gigolô": recebe
a receita da venda patrimonial,
mas continua sócio oculto das
empresas, participando de 35%
dos lucros por meio do Imposto
de Renda.
Os exemplos de armadilhas semânticas se repetem. Grande
parte do nacionalismo brasileiro assenta sobre uma confusão
de "recursos" e "riquezas". Temos muitos recursos naturais e
pouca riqueza. É que para passarmos do recurso à riqueza, são
necessárias três coisas escassas:
investimento, tecnologia e mercados.
Inúmeras campanhas político-ideológicas se têm montado em
torno de confusões semânticas.
A campanha do "petróleo é nosso", por exemplo, não foi mais
que uma idiotice semântica que
se tornou paixão nacional e
bandeira ideológica.
A importância da precisão semântica me veio novamente à
mente agora que enfrentamos as
agruras da desvalorização cambial. Ela provoca inevitáveis
"ajustes de preços relativos", como parte de um processo de melhoria do balanço de pagamentos. Há uma corcova nos preços
dos produtos transacionáveis -
as importações passam a ser
mais caras (e por isso desencorajadas) e os preços de exportação sobem em moeda local, para
tornar a exportação um bom negócio. Esse ajuste, de uma só vez,
de preços relativos não deve ser
confundido com inflação, que é
"uma alta geral e contínua de
preços". As desvalorizações têm
certamente um "efeito contágio" e geram a tentação de repasses. Isso se traduz em pressão
inflacionária, mas não resulta
necessariamente em inflação, se
não estiver presente o combustível monetários, isto é, a expansão dos meios de pagamento.
Ao mesmo tempo que há palavras que são armadilhas semânticas, há os famosos "weasel
words", de que falava Hayek.
"Weasel" é um animalzinho da
família dos mustelídios, que têm
a estranha faculdade de esvaziar o conteúdo do ovo, deixando intacta a casca. Segundo Hayek, a principal "weasel word"
no discurso corrente é a expressão "social". Quando se fala, por
exemplo, em "social-democracia" nada se acrescenta ao conceito básico de democracia, por
ser inconcebível uma democracia anti-social. A não ser, naturalmente, que o povo tenha vocação suicida, pois que democracia não é outra coisa senão o
governo do povo. Outra esplêndida bobagem semântica é a expressão "justiça social". Isso
pressupõe que haja um clube de
justiceiros capazes de distinguir,
melhor que o mercado, entre
quem merece e quem não merece. É o que os socialistas pretendem fazer. Só que os "merecedores" são eles próprios ou a burocracia que os apóia.
Roberto Campos, 81, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal
pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna
na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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