São Paulo, Domingo, 14 de Fevereiro de 1999
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LANTERNA NA POPA
Armadilhas semânticas

ROBERTO CAMPOS

Há palavras que se tornam venenosas, por transmitirem sinalizações equivocadas. Uma dessas expressões é "reserva cambial". Embalamo-nos com uma falsa sensação de segurança quando nossas "reservas" atingiram US$ 74 bilhões. A ilusão proveio de pensarmos que tínhamos "reservas", quando tínhamos apenas "recursos".
As reservas confiáveis são as que resultam de saldos no comércio de mercadorias e serviços, de investimentos diretos em instalações e equipamentos ou mesmo de empréstimos a longo prazo. As reservas de alguns países emergentes como a China Continental ou Taiwan são desse tipo. No caso brasileiro, ao contrário, a aparente folga cambial vinha principalmente de investimentos porta-fólio, em ações de bolsa de títulos de prazo fixo, em resposta a juros altos ou percepções de rentabilidade imediata. Trata-se de capital volátil. Empréstimos externos de curto prazo são também "recursos", porém não "reservas".
O paradoxo brasileiro, claramente visível, na conjuntura de "aversão ao risco" criada pela crise russa, é que éramos um país de elevados "recursos" e magras "reservas cambiais". A armadilha semântica produziu sinalizações equivocadas. Após as crises do México (1995) e da Ásia (1987), tivemos a agradável surpresa de reconstituirmos rapidamente, com o atrativo de juros altos, nossas "reservas" cambiais. Doce e ledo engano! Tínhamos absorvido "recursos", mas não acumulado "reservas". O indicador perigoso, que deveria ser o sinal de alarme, era o crescente déficit em conta corrente, oriundo principalmente do saldo negativo no intercâmbio de bens e serviços.
Essa ilusão de ótica fez com que o Brasil sobreestimasse o tempo disponível de travessia, praticando uma mistura de gradualismo cambial e frouxidão fiscal. Somente quando o colapso russo despertou na finança internacional uma anormal "aversão ao risco" é que nos conscientizamos dramaticamente da diferença entre "reserva" e "recurso". Os juros altos passaram do fator de "atração" a fator de "intimidação" pelo seu impacto implosivo sobre a dívida pública. O medo passou a superar a ganância.
Há outras armadilhas semânticas, como por exemplo a falsa identidade entre "empresa pública" e "patrimônio público", que gera irracional resistência à privatização. É que as empresas públicas há muito deixaram de ser "patrimônio público". Já foram privatizadas, não em favor do grande público do setor privado, e sim da burguesia estatal. As chamadas "jóias da coroa", como a Vale do Rio Doce e a Petrossauro, só se enquadrariam no conceito de patrimônio público se: a) houvesse uma gestão participativa em que o público se fizesse representar significativamente e b) pagassem apetitosos dividendos ao Tesouro, como representante dos acionistas contribuintes. Nada disso acontecia ou acontece, com as estatais. Elas são geridas por uma aliança informal entre políticos e tecnocratas, para os quais o "bem comum" é figura de retórica e não uma missão apostólica. As doações anuais das estatais aos seus fundos de pensão excedem de muito os dividendos pagos (quando são pagos) ao Tesouro. E esses fundos criam em favor dos "burgueses do Estado" uma série de privilégios, que os transforma numa nova classe, comparável sob muitos aspectos à "nomenklatura" dos países socialistas. Entre esses privilégios se incluem uma garantia formal e informal de emprego, aposentadorias generosas e precoces, serviços de assistência à saúde indisponíveis ao grande público, empréstimos subvencionados etc.
O que na discussão corrente se chama de "alienação do patrimônio público pela privatização" não é mais do que uma substituição de beneficiários. Em vez de serem estes os burgueses do Estado, que desfrutam do poder sem correr riscos, passam a ser agentes produtivos do setor privado, que aplicam poupanças e correm riscos.
Cumpre não esquecer ainda que, quando o governo privatiza empresas, mantém uma espécie de "privilégio do gigolô": recebe a receita da venda patrimonial, mas continua sócio oculto das empresas, participando de 35% dos lucros por meio do Imposto de Renda.
Os exemplos de armadilhas semânticas se repetem. Grande parte do nacionalismo brasileiro assenta sobre uma confusão de "recursos" e "riquezas". Temos muitos recursos naturais e pouca riqueza. É que para passarmos do recurso à riqueza, são necessárias três coisas escassas: investimento, tecnologia e mercados.
Inúmeras campanhas político-ideológicas se têm montado em torno de confusões semânticas. A campanha do "petróleo é nosso", por exemplo, não foi mais que uma idiotice semântica que se tornou paixão nacional e bandeira ideológica.
A importância da precisão semântica me veio novamente à mente agora que enfrentamos as agruras da desvalorização cambial. Ela provoca inevitáveis "ajustes de preços relativos", como parte de um processo de melhoria do balanço de pagamentos. Há uma corcova nos preços dos produtos transacionáveis - as importações passam a ser mais caras (e por isso desencorajadas) e os preços de exportação sobem em moeda local, para tornar a exportação um bom negócio. Esse ajuste, de uma só vez, de preços relativos não deve ser confundido com inflação, que é "uma alta geral e contínua de preços". As desvalorizações têm certamente um "efeito contágio" e geram a tentação de repasses. Isso se traduz em pressão inflacionária, mas não resulta necessariamente em inflação, se não estiver presente o combustível monetários, isto é, a expansão dos meios de pagamento.
Ao mesmo tempo que há palavras que são armadilhas semânticas, há os famosos "weasel words", de que falava Hayek. "Weasel" é um animalzinho da família dos mustelídios, que têm a estranha faculdade de esvaziar o conteúdo do ovo, deixando intacta a casca. Segundo Hayek, a principal "weasel word" no discurso corrente é a expressão "social". Quando se fala, por exemplo, em "social-democracia" nada se acrescenta ao conceito básico de democracia, por ser inconcebível uma democracia anti-social. A não ser, naturalmente, que o povo tenha vocação suicida, pois que democracia não é outra coisa senão o governo do povo. Outra esplêndida bobagem semântica é a expressão "justiça social". Isso pressupõe que haja um clube de justiceiros capazes de distinguir, melhor que o mercado, entre quem merece e quem não merece. É o que os socialistas pretendem fazer. Só que os "merecedores" são eles próprios ou a burocracia que os apóia.


Roberto Campos, 81, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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