São Paulo, domingo, 14 de abril de 2002

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Sobrevivente, 109, não gosta do beato

DA AGÊNCIA FOLHA, EM CANUDOS

A carteira de identidade em cima da mesa comprova. Aos 109 anos -110 em 18 de julho-, o vaqueiro aposentado Antonio Dantas de Oliveira diz ser a única pessoa viva que conheceu Antonio Conselheiro. Se vangloria de ter tido inúmeras histórias para contar aos seus 8 filhos, 27 netos e mais de 50 bisnetos.
Magro, sempre deitado em uma rede, Oliveira tinha cinco anos quando os seus pais o levaram para conhecer Conselheiro. "Era um homem velho, magro, usava roupa azul e tinha uma barba muito grande. Falava manso, sempre olhando para os olhos das pessoas que o cercavam", lembra, referindo-se ao beato cearense que liderou o levante popular com contornos religiosos e políticos em Canudos (BA), entre 1893 e 1897.
O aposentado lembra que Antonio Conselheiro era muito admirado pelos moradores do sertão baiano. "O Conselheiro não gostava de andar sozinho, sempre era seguido por muita gente. Os meus pais gostavam muito dele."
Três vezes viúvo, Oliveira diz que não gosta do beato. "Antonio Conselheiro era um louco, vivia falando que era o Bom Jesus. Apesar de ter tomado a sua bênção, nunca gostei da sua figura esquisita. Ele era malvado, matou muitas pessoas e merece o inferno."
Sempre sorridente e lúcido, o aposentado conta que, depois do final da guerra, somente voltou duas vezes à cidade em que nasceu. "Não tenho vontade de voltar a uma terra amaldiçoada pelo próprio homem", disse Oliveira, que mora em Euclides da Cunha, a 62 quilômetros de Canudos.
Outro personagem polêmico que o aposentado diz ter conhecido foi Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. "Lampião foi em minha casa três vezes. Ele ficava o dia todo dentro de casa, mas fazia questão de dormir no mato."
Ao contrário de Conselheiro, o aposentado baiano, que conheceu o mar aos 107 anos, quando foi submetido a uma cirurgia no olho direito em Salvador, tem boas lembranças de Lampião. "Ele era um homem honesto, não fazia mal a ninguém. Ele só matava quem o desafiava."
Apesar de não ter conhecido Antonio Conselheiro, o aposentado João Reginaldo de Matos, 94, tem muitas lembranças da guerra que deixou mais de 20 mil mortos, segundo historiadores.
"Meus avós e cinco tios foram assassinados pelo Exército", diz Matos, que mora a menos de 500 metros do local onde foi abandonado o corpo do coronel Antonio Moreira César, comandante de uma das expedições do Exército derrotada pelos seguidores de Antonio Conselheiro.
Mais de cem anos depois da guerra, as condições de vida do aposentado não diferem muito daquelas de seus antepassados. Ele mora em uma pequena casa sem energia e água, a menos de três quilômetros de Canudos.
Ele garante que já encaminhou três cartas ao presidente Fernando Henrique Cardoso solicitando energia para sua casa. "Até hoje nada foi feito", disse.
Para assistir à televisão, o seu passatempo preferido, Matos recorre à tecnologia -instalou uma parabólica no quintal de sua casa e comprou uma televisão que funciona só quando ligada a bateria que ele instalou em sua casa.


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