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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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ELIO GASPARI

A invasão chique de Angra

Aqui vai um caso notável de invasão de terras. Uma invasão do andar de cima sobre o de baixo. Tudo isso no finíssimo litoral de Angra dos Reis.
Sua história começa no mais alto dos andares, em 1879, quando morreu, aos 89 anos, o viúvo José de Souza Breves. Ele e o irmão Joaquim José talvez tenham sido os homens mais ricos do Brasil em todos os tempos. Dominavam café, escravaria e as terras de Marambaia a Angra dos Reis. José gostava de uma boa festa e morreu sem deixar descendência. Suas terras iam do alto da serra da Bocaina aos portos de Bracuí e Jirumirim. Isso tudo e pelo menos duas ilhas.
Em vez de distribuir suas terras entre os parentes, Breves libertou seus escravos, deu uma fazenda a um amigo, criou um fundo para o dote de 12 órfãs e um prêmio literário. Encheu de terras e dinheiro três igrejas da região. No coração do testamento, deixou 200 alqueires para a Santa Casa de Angra e outros 300 para os pescadores, agregados e escravos. Nesse caso, deu-lhes o usufruto por três gerações (vencimento estimado em 1960). Terra do tamanho de Copacabana, Ipanema, Leblon e Lagoa juntos.
Passou o tempo, e a Santa Casa de Angra está sem palmo de terra, apesar de não haver registro de que tenha vendido o que ganhou. Salvo alguns descendentes de escravos que vivem no alto da serra, os negros foram-se embora. Ninguém sabe quanta terra voltou para os Breves e como eles a venderam. É certo que essas terras seriam uma migalha do patrimônio original.
Os herdeiros de José de Souza Breves poderiam ser uns 500. Os livros dos cartórios referentes aos anos de 1900 e 1915 sumiram.
Nas antigas terras de Breves estão hoje alguns dos mais valiosos condomínios e mansões do andar de cima nacional. O padre Reynato Breves, autor do meticuloso livro "A Saga dos Breves", resolveu sair atrás do destino dessas terras. Acharam-se alguns livros de cartório que se supunham perdidos. Há um advogado mexendo neles.
Ver um abonado discutindo a respeitabilidade de sua escritura com um interlocutor que carrega nas costas a memória de escravos, pescadores e ricaços arruinados será uma bela cena brasileira. Talvez os com-terra de Angra possam organizar uma palestra para ouvir um profissional capaz de explicar, com grande racionalidade, a lógica de suas invasões. Chama-se João Pedro Stedile.

Os americanos ensinam a exportar

A máquina de incentivo às exportações do governo americano deu uma espetacular demonstração de competência para vender seus produtos em Pindorama. Desde abril, cozinha-se na Infraero uma compra de equipamentos de raios X e farejadores de explosivos e drogas. Coisa de R$ 30 milhões. Essa operação foi mantida em relativo sigilo. Cuidava dela o Coordenador de Proteção contra Ilícitos, Newton Vaz Senna.
Em maio, ele mandou uma mensagem a uma funcionária da embaixada americana. Pedia ajuda para obter informações que lhe permitissem montar uma licitação para a compra de 150 aparelhos de raios X para bagagens, 135 farejadores e 300 detectores de metais. Senna admitiu que "não temos muito conhecimento sobre tais equipamentos". Tinha pressa: "Precisamos desses dados ontem, pois nosso presidente nos deu o prazo para esta semana".
A Embaixada dos EUA fez chegar uma cópia da mensagem aos empresários americanos interessados no negócio. A choldra nativa, que sustenta a Infraero, passou 17 semanas sem saber de nada. Até hoje a Infraero não revelou se pretende realizar uma audiência pública para a discussão do edital. (O ministro Waldyr Pires, que na semana passada fez uma palestra na empresa sobre ética, sabe que a luz do sol é o melhor dos detergentes.)
Em agosto, o departamento comercial do governo dos Estados Unidos voltou a transmitir. Listou os equipamentos e avisou aos empresários americanos que a licitação deverá ser aberta até o fim do ano. Isso é que é serviço público. A turma da embaixadora Donna Hrinak trabalha duro e, de quebra, ajuda a desembaçar os processos de compra de equipamentos por estatais brasileiras.
A Infraero informa que nesta semana anunciará o método de sua preferência para a compra do equipamento.

Criai dificuldades e vendei facilidades

Os ministros Márcio Thomaz Bastos e Antonio Palocci Filho deveriam tentar responder à seguinte pergunta: Nos últimos cinco anos, quantas vezes nós e nossos familiares viajamos para os exterior com mais de US$ 3.500 na carteira? Quantas vezes compramos alguns dólares adicionais no banco? Em São Paulo, um dos maiores bancos do país só vende dólares aos seus correntistas numa única agência. Atendimento geral com recibo, só no Banco do Brasil. Sem recibo, com os doleiros.
Em 1995, quando o governo estabeleceu o limite de R$ 10 mil para o brasileiros que viajam ao exterior, esse dinheiro valia US$ 10 mil. Hoje essa cifra vale pouco mais de US$ 3.300. A lei transformou-se numa dificuldade que cria um balcão gerador de facilidades.
Para viajar com mais de R$ 10 mil, o cidadão é obrigado a comprovar (com recibo bancário) a natureza de sua transação cambial. Depois do assassinato do comerciante Chan Kim Chang, uma turista argentina foi detida com US$ 8.700. Como manda a lei, confiscaram-lhe o dinheiro. Deu-se ao numerário de uma turista que cometeu um engano (não preencheu um documento informando que tinha consigo mais de US$ 3.300) o mesmo tratamento que se dá a uma partida de droga.
Se o doutor Palocci perguntar à Receita Federal o que está acontecendo por conta desse teto, porá a barba de molho.

Erro
Foi injusta a insinuação de que o Palácio do Planalto mandou comprar papel higiênico de duas qualidades diferentes. O palácio licitou dois tipos de papel porque são dois os modelos de suporte existentes em seus banheiros.
Em alguns casos, usam-se rolos, e em outros, caixinhas com papel interfolhado, aquele que, puxando-se um pedaço, aparece a ponta da folha seguinte.
Os dois tipos de papel não são iguais, mas são semelhantes na qualidade.

Por partes
Lula está mostrando que não frita ministros.
O que ele vem fazendo com os professores Cristovam Buarque, da Educação, e Roberto Amaral, da Ciência e Tecnologia, mostra que prefere esquartejá-los.

Aviso amigo
Gente que tem juízo, sabe fazer contas e já viu elefante voar terminou a semana avisando ao Planalto que era melhor sumir com o projeto de reforma tributária.
O PT-Planalto empurrou goela abaixo de uma bancada que não sabe o que votou um projeto explosivo. Se entrar em vigor, fará pela economia brasileira o que a Al Qaeda fez pelas torres gêmeas de Nova York.

Casa da sogra
Os presidentes do Senado, José Sarney, e da Câmara, João Paulo Cunha, transformaram o prédio do Congresso Nacional em estrutura de apoio para duas enormes faixas da máquina de propaganda do Poder Executivo.
Sarney e Cunha entraram no calendário de festejos do 7 de Setembro, no qual Duda Mendonça embutiu uma campanha de propaganda oficial. Coisa velha, idéia de todos os maquiadores de monarcas. Trabalhando numa democracia, são primos tortos de Lourival Fontes, o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo que criou o "pai dos pobres".
Sarney e Cunha permitiram que fossem penduradas nos edifícios do Congresso Nacional duas grande faixas onde, além de uma enorme bandeira e do logotipo da propaganda oficial do atual governo, aparece também a marca da Petrobras, patrocinadora da instalação. Resta saber se os senadores e deputados aceitam outras modalidades de patrocínio. João Paulo Cunha ficaria bem com boné da ECT. A bancada petista no Senado mereceria macacões da BR Distribuidora.

Paixão
Está consolidado o entendimento do Planalto com as grandes empreiteiras nacionais.

Entrevista

Adilson de Oliveira
(57 anos, professor do Instituto de Economia da UFRJ).

A privataria das empresas elétricas acabou em desordem, exatamente como o senhor previa em 1997. O salvamento da AES/Eletropaulo pelo BNDES é o fim de um processo anômalo ou o início de uma nova anomalia ?
Temo que seja o início de algo pior, de um Proer -ou Proel- das empresas elétricas e das concessionárias de serviços públicos privatizadas nos anos 90. O acordo do BNDES com a AES era necessário, até inevitável. Você não pode sentar em cima de uma crise no fornecimento de energia para o coração industrial do país. Nesse sentido, o acordo é tranquilizador. É tranquilizador também porque manda um sinal para outras concessionárias que estão em dificuldades. O governo mostrou que pretende reordenar o setor com a ajuda do capital estrangeiro e que não quer reestatizá-lo. As vantagens terminam aí, na generalidade. O acordo perdoa uma conta US$ 118 milhões de juros resultantes de uma inadimplência de US$ 1,2 bilhão. O principal ativo dado pela AES como garantia do acordo já está comprometido, garantindo outra dívida, em bancos americanos. O BNDES já se resguardou e sem essa garantia o acordo falece. Por medo da reestatização, o controle da nova empresa ficou com a AES. Não acho certo. Essa negociação tornou-se um marco para o mercado. Um farol avisando: é por aqui. Prova disso é que as ações da Light subiram 15% no dia em que o acordo foi anunciado. É inevitável, vai se formar uma fila de concessionários na porta do BNDES.

Onde é que se errou?
Esse é um caso perfeito e acabado de herança maldita. O erro foi cometido em 1996, quando o governo e a administração do BNDES moldaram as regras da privatização do setor elétrico. Em vez de estudar a regulamentação para depois privatizar, como fizeram os ingleses, privatizaram primeiro para regulamentar depois. Metade da Eletropaulo foi comprada com um empréstimo de curto prazo de US$ 900 milhões, feito no mercado internacional. A outra metade foi paga com um financiamento do BNDES sem que ele recebesse garantias adequadas. Esse evento permitiu à AES a apresentação de propostas leoninas ao banco. A Eletropaulo foi vendida por US$ 1,8 bilhão. Entre 1999 e 2001 ela deu US$ 600 milhões de lucro. Remeteu para os EUA cerca de US$ 500 milhões. A partir de 2002, a empresa passou a perder dinheiro. Coisa equivalente aos US$ 600 milhões que lucrara. Aí é que está a anomalia. Na hora de ganhar, ela remete os lucros e o acionista americano fica feliz. Na hora de perder, ela chama o BNDES. O acionista continua feliz. É o capitalismo sem risco.

Há o risco de ainda se inventar novos desastres?
Há. O novo modelo que o governo propôs para o setor elétrico diz com todas as letras que os riscos do empreendimento devem ser assumidos pelos consumidores e, em ultima instância, pelos contribuintes. No centro de tudo isso está a questão da garantia da rentabilidade. Querem montar um sistema pelo qual os acionistas das empresas ficam com um rendimento assegurado e os consumidores brasileiros carregam os riscos do negócio. Esse tipo de capitalismo acaba no caixa do BNDES. Hoje, a situação do setor elétrico está pior do que antes de ser privatizado. Ele não podia continuar como estava, mas não precisava ficar como ficou.



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