|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CABEÇAS CORTADAS
Estátuas destroçadas em Monte Santo são do século 19; católicos acusam, sem provas, os evangélicos
Destruição de imagens revolta fiéis na BA
MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A MONTE SANTO (BA)
Duas imagens sacras do início
do século 19 do calvário de Monte
Santo, no sertão da Bahia, passaram incólumes pela guerra de Canudos (1896-97), pelos ataques da
Coluna Prestes nos anos 20, pelas
correrias do bando de Lampião
uma década após, mas não resistiram aos conflitos do século 21.
Um Senhor dos Passos e uma
Nossa Senhora das Dores, esculpidos em madeira em tamanho
natural, foram arrancados de suas
capelas, trancadas a cadeado, e
queimados. Sobraram as cabeças
das duas imagens, e do Cristo um
pouco mais -o braço direito e o
tronco chamuscado.
Há três hipóteses para o crime:
1. Vingança de evangélicos contra um dos santuários mais populares do sertão, que recebe 10 mil
romeiros na Festa de Todos os
Santos, no final de outubro;
2. Retaliação de fazendeiros
contra o apoio que a igreja da região dá aos sem-terra; e
3. Vandalismo puro.
A destruição das imagens causou comoção em Monte Santo, a
351 km de Salvador. As imagens
destruídas foram encontradas no
mato, no meio das cinzas, no dia 6
de maio, e desde então já foram
realizadas duas procissões só com
as cabeças. A primeira delas, em
junho, reuniu cerca de 3.000 pessoas, praticamente um terço dos
moradores da zona urbana da cidade (a população de Monte Santo é de 54 mil habitantes). Na segunda, em julho, havia perto de
1.000 pessoas, segundo a igreja.
"Em 22 anos de restauração eu
nunca tinha visto nada parecido,
tamanha a fúria, tamanha a barbárie", relata Huides Cunha, 44,
restaurador do Iphan (Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) de Salvador, que fez
a perícia das peças.
O que mais o impressionou foi a
violência contra a face do Cristo:
"Há um afundamento no nariz e
os olhos de vidro, feitos em Portugal, raríssimos, foram esmagados
ou com marreta ou tranca de porta". Nas contas do técnico, sobrou
só 30% da Nossa Senhora e 50%
do Cristo.
Guerra santa
A primeira reação dos católicos
de Monte Santo foi jogar a culpa
nos evangélicos. "Acho que isso é
coisa dos crentes da Universal.
Eles já protestaram aqui na cidade
dizendo que imagem de santo
não presta", diz o aposentado e
militante do PT Rodolfo Andrade, 55. Há um precedente que pode sugerir intolerância religiosa.
Em 2000, já haviam cortado o cabelo de Nossa Senhora dos Passos
e defecado na capela.
"O povo ligou a destruição das
imagens com o chute na santa",
diz o padre Claudio Cobalchini,
51, da igreja de Monte Santo, referindo-se ao episódio ocorrido em
1995. "Mas não dá para culpar
ninguém sem provas, é leviano."
A suspeita sobre os evangélicos
era tão forte que a primeira providência do Iphan não tinha nada
de técnica: "Fomos lá para apaziguar os ânimos. Quase não conseguimos fazer a perícia porque havia uma aglomeração grande na
igreja e um clima profundo de revolta", lembra Huides Cunha.
Para evitar que o clima de intolerância aumentasse, o Patrimônio Histórico proibiu as peças de
saírem da Igreja em procissão
porque já havia boatos de que um
novo protesto seria realizado em
outubro. "Usar as cabeças em
procissão só serviria para incitar o
ódio", diz o restaurador.
Santuário do século 18
Monte Santo tornou-se um centro místico e mítico no sertão pela
sua história religiosa e bélica. A fama religiosa remonta a 1785,
quando o frade italiano Apolônio
de Todi decidiu construir na serra
de Piquaraçá os passos do Senhor
e de Nossa Senhora das Dores. Ficaram prontos em 1786.
As imagens atingidas já aparecem listadas numa ata da igreja de
1825, mas podem ser mais antigas. Há uma referência a um Cristo e a uma Nossa Senhora das Dores num documento de 1799, mas
podem ser outras imagens.
A fama da cidade só cresceria
com a decisão de Antonio Conselheiro de criar em junho de 1893
uma comunidade católica em
uma fazenda de gado de Monte
Santo chamada Canudos. Uma
das primeiras providências do
Conselheiro foi substituir o nome
Canudos por Belo Monte.
"Seguramente não estamos
diante de mera coincidência", escreveu o historiador José Calasans. Sua tese é a de que Conselheiro inspirou-se no nome Monte Santo para batizar a comunidade Belo Monte, que serviu de estopim para a guerra de Canudos ao
se recusar a cumprir as ordens da
recém-proclamada República
(1889), sobretudo o casamento civil, considerado herético.
O escritor Euclides da Cunha
passou por Monte Santo em 1897,
a caminho do campo de batalhas,
e elogiou a "engenharia rude e audaciosa" do santuário, cujas capelas Antonio Conselheiro havia
ajudado a restaurar em 1892.
Por causa desse peso histórico,
Hildegardo Cordeiro, 65, ex-presidente da Irmandade da Santa
Cruz, acredita que o atentado foi
planejado. "Foi uma cerimônia
diabólica. A violação dessas imagens quebra um elo nas festividades do sertão. Na procissão na
véspera da Sexta-Feira Santa, o
Cristo encontrava-se com Nossa
Senhora das Dores. E agora?".
Texto Anterior: Elio Gaspari Próximo Texto: Glauber filmou na cidade Índice
|