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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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CABEÇAS CORTADAS

Estátuas destroçadas em Monte Santo são do século 19; católicos acusam, sem provas, os evangélicos

Destruição de imagens revolta fiéis na BA

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A MONTE SANTO (BA)

Duas imagens sacras do início do século 19 do calvário de Monte Santo, no sertão da Bahia, passaram incólumes pela guerra de Canudos (1896-97), pelos ataques da Coluna Prestes nos anos 20, pelas correrias do bando de Lampião uma década após, mas não resistiram aos conflitos do século 21.
Um Senhor dos Passos e uma Nossa Senhora das Dores, esculpidos em madeira em tamanho natural, foram arrancados de suas capelas, trancadas a cadeado, e queimados. Sobraram as cabeças das duas imagens, e do Cristo um pouco mais -o braço direito e o tronco chamuscado.
Há três hipóteses para o crime:
1. Vingança de evangélicos contra um dos santuários mais populares do sertão, que recebe 10 mil romeiros na Festa de Todos os Santos, no final de outubro;
2. Retaliação de fazendeiros contra o apoio que a igreja da região dá aos sem-terra; e
3. Vandalismo puro.
A destruição das imagens causou comoção em Monte Santo, a 351 km de Salvador. As imagens destruídas foram encontradas no mato, no meio das cinzas, no dia 6 de maio, e desde então já foram realizadas duas procissões só com as cabeças. A primeira delas, em junho, reuniu cerca de 3.000 pessoas, praticamente um terço dos moradores da zona urbana da cidade (a população de Monte Santo é de 54 mil habitantes). Na segunda, em julho, havia perto de 1.000 pessoas, segundo a igreja.
"Em 22 anos de restauração eu nunca tinha visto nada parecido, tamanha a fúria, tamanha a barbárie", relata Huides Cunha, 44, restaurador do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) de Salvador, que fez a perícia das peças.
O que mais o impressionou foi a violência contra a face do Cristo: "Há um afundamento no nariz e os olhos de vidro, feitos em Portugal, raríssimos, foram esmagados ou com marreta ou tranca de porta". Nas contas do técnico, sobrou só 30% da Nossa Senhora e 50% do Cristo.

Guerra santa
A primeira reação dos católicos de Monte Santo foi jogar a culpa nos evangélicos. "Acho que isso é coisa dos crentes da Universal. Eles já protestaram aqui na cidade dizendo que imagem de santo não presta", diz o aposentado e militante do PT Rodolfo Andrade, 55. Há um precedente que pode sugerir intolerância religiosa. Em 2000, já haviam cortado o cabelo de Nossa Senhora dos Passos e defecado na capela.
"O povo ligou a destruição das imagens com o chute na santa", diz o padre Claudio Cobalchini, 51, da igreja de Monte Santo, referindo-se ao episódio ocorrido em 1995. "Mas não dá para culpar ninguém sem provas, é leviano."
A suspeita sobre os evangélicos era tão forte que a primeira providência do Iphan não tinha nada de técnica: "Fomos lá para apaziguar os ânimos. Quase não conseguimos fazer a perícia porque havia uma aglomeração grande na igreja e um clima profundo de revolta", lembra Huides Cunha.
Para evitar que o clima de intolerância aumentasse, o Patrimônio Histórico proibiu as peças de saírem da Igreja em procissão porque já havia boatos de que um novo protesto seria realizado em outubro. "Usar as cabeças em procissão só serviria para incitar o ódio", diz o restaurador.

Santuário do século 18
Monte Santo tornou-se um centro místico e mítico no sertão pela sua história religiosa e bélica. A fama religiosa remonta a 1785, quando o frade italiano Apolônio de Todi decidiu construir na serra de Piquaraçá os passos do Senhor e de Nossa Senhora das Dores. Ficaram prontos em 1786.
As imagens atingidas já aparecem listadas numa ata da igreja de 1825, mas podem ser mais antigas. Há uma referência a um Cristo e a uma Nossa Senhora das Dores num documento de 1799, mas podem ser outras imagens.
A fama da cidade só cresceria com a decisão de Antonio Conselheiro de criar em junho de 1893 uma comunidade católica em uma fazenda de gado de Monte Santo chamada Canudos. Uma das primeiras providências do Conselheiro foi substituir o nome Canudos por Belo Monte.
"Seguramente não estamos diante de mera coincidência", escreveu o historiador José Calasans. Sua tese é a de que Conselheiro inspirou-se no nome Monte Santo para batizar a comunidade Belo Monte, que serviu de estopim para a guerra de Canudos ao se recusar a cumprir as ordens da recém-proclamada República (1889), sobretudo o casamento civil, considerado herético.
O escritor Euclides da Cunha passou por Monte Santo em 1897, a caminho do campo de batalhas, e elogiou a "engenharia rude e audaciosa" do santuário, cujas capelas Antonio Conselheiro havia ajudado a restaurar em 1892.
Por causa desse peso histórico, Hildegardo Cordeiro, 65, ex-presidente da Irmandade da Santa Cruz, acredita que o atentado foi planejado. "Foi uma cerimônia diabólica. A violação dessas imagens quebra um elo nas festividades do sertão. Na procissão na véspera da Sexta-Feira Santa, o Cristo encontrava-se com Nossa Senhora das Dores. E agora?".



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