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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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ELIO GASPARI

Diniz quebrou a lei siciliana


Há muito tempo não acontecia uma coisa tão boa. O empresário Abílio Diniz (na montagem), dono da rede de supermercados Pão de Açúcar, denunciou como sonegadores dois concorrentes do Rio de Janeiro (Mundial e Guanabara). Empresário brasileiro dá palpite sobre tudo, mas não gosta de falar das malfeitorias de seus colegas. Industriais, banqueiros, comerciantes e agricultores sabem muito bem como seus concorrentes lesam o fisco, descumprem as leis trabalhistas y otras cositas más. Eles sabem que essas práticas inibem a concorrência, mas seguem uma lei de silêncio quase siciliana.
Tomara que se possa dizer que Abílio Diniz chutou o pau da barraca. O combate à sonegação e à informalidade são de longe coisas mais relevantes do que a pífia reforma tributária que o governo patrocina. No Brasil, o varejo de produtos alimentícios e de limpeza movimenta em torno de R$ 150 bilhões por ano e emprega 1 milhão de pessoas. Metade desse movimento passa por baixo do pano. Nos Estados Unidos e na Europa, a sonegação fica em 10%, no máximo.
O comerciante que trabalha como a lei manda paga impostos suecos (45% num quilo de arroz ou 71% em cima de um filtro solar) e enfrenta um mercado africano (70% da carne fresca passa ao largo do fisco). Presidindo essa anarquia, o governo prefere morder mais dos que lhe pagam do que ir buscar o que lhe devem. A maior parte da sonegação vem da venda sem notas, mas há um pedaço da maracutaia que passa por indústrias e lojas de algum renome. Três exemplos:
1) O cidadão vai a uma loja e vê uma geladeira anunciada por R$ 1.200. Quando lê a nota fiscal descobre que pagou R$ 700 pela mercadoria e R$ 500 por serviços técnicos. A Viúva acaba de tomar uma tunga de R$ 100.
O lojista comprou a geladeira por R$ 1.000 e vendeu-a por R$ 700 (o que é ilegal) para burlar o ICMS. Os tais R$ 500 de serviços são fingimento.
2) Há um golpe chamado FOB-Fábrica. O comerciante faz uma compra de R$ 50 milhões de sabonetes numa conceituada fábrica. Um e outro operam em São Paulo, a poucos quilômetros de distância. O comprador pede que a indústria faça a venda para sua filial em Mato Grosso. Para facilitar, compromete-se a recebê-la na porta da fábrica. É claro que essa carga nunca chegará a Mato Grosso. Como o ICMS de São Paulo é de 18% e o de Mato Grosso de 7%, a Viúva tomará um golpe de R$ 6 milhões.
3) O terceiro exemplo, mais conhecido, é do empregado com um pé na legalidade e outro na informalidade. O funcionário deve ganhar R$ 500. Assinando-se a carteira e pagando-se todos os encargos, ele custará R$ 1.100. O empregador faz o registro por R$ 300, e o empregado custará R$ 660. Sobraram R$ 440. O patrão dá R$ 250 ao empregado, que embolsará um salário 10% maior que o desejado. A empresa economizará R$ 190, e a Viúva terá tomado uma tunga de R$ 240.
Imaginando um varejista que sonega 50% do que deveria pagar ao erário, pode-se afirmar que ele ganha alguma coisa entre 5% e 7% do seu faturamento. Num mercado onde a margem de lucro dificilmente passa dos 3%, sonegar é um grande negócio.
Com a autoridade de quem teve a coragem de denunciar outros empresários, Abílio Diniz dá outra contribuição para uma reforma tributária séria. Ele propõe que os alimentos básicos e os medicamentos fiquem isentos de qualquer tributo. No México, essa medida quebrou a perna dos sonegadores.

Dor da família

Por mais doloroso que possa parecer, o caso do assassinato do prefeito Celso Daniel só poderá ser devidamente avaliado pela opinião pública se a Justiça aceitar o pedido da família de quebra do sigilo do processo.
PMDB frito

A banda governista do PMDB caiu num alçapão. O Planalto descobriu que pode conseguir votos para aprovar seus projetos no PFL e no PSDB. Em certos casos, esses votos lhe custam muito pouco. Vai daí, por que retribuir por votos que podem vir de graça?

Papo líbio

Não se sabe se o ditador líbio Muammar Gaddafi contou o segredo ao amigo Lula. Sua estampa deve mais ao Brasil do que a qualquer outro país.
São de um cirurgião plástico de Niterói o traçado da papada e a esticadinha do rosto do líder vitalício e hereditário da revolução líbia.
Aos 61 anos, o amigo Gaddafi gosta de um trato. Desenha seus uniformes e escolhe com muito cuidado os mantos com que desfila.

Estrela tucana

O ex-deputado Milton Temer prevê: "Em 2006 o PSDB não terá saída senão apoiar a candidatura de Lula à reeleição. Deliberadamente, a direção política do PT está armando o jogo nesse sentido".
Pode-se discordar, mas essa será uma das mais bonitas flores do recesso.

Novos inquilinos

Departamento de idéias boas, simples e baratas. Humberto Barreto, ex-presidente da Caixa Econômica Federal, sugere a Lula uma medida capaz de estimular o setor da construção civil, onde a estagnação tem se mostrado mais renitente.
O governo deve suspender a vigência da lei do inquilinato para novos imóveis residenciais. Além disso, pode isentar do Imposto de Renda, por um período de dez anos, os ganhos com aluguéis. As duas mudanças só valeriam para as novas construções. Barreto constata que ninguém mais investe em imóveis para alugá-los, como se fazia em tempos passados. Não adianta defender os interesses dos inquilinos com leis muito bonitas, se ninguém quer ser senhorio.

Um milhão de aposentados na fila


Caiu nas costas do ministro Ricardo Berzoini o peso da cruz da falta de piedade do INSS. Em vez de reconhecer o direito dos brasileiros tungados pelos sucessivos planos econômicos dos governos passados, a Previdência exaure todos os recursos possíveis, ganhando tempo em cima de pessoas humildes. A malvadeza previdenciária congestionou a Justiça Federal. Hoje, de cada dois processos que tramitam nessa Justiça, um tem o INSS como parte. Há poucas semanas o ministro Berzoini foi informado de que o número de ações contra o INSS nos juízos especiais bateu a marca do milhão.
São pedidos de revisão de benefícios de aposentados que vão buscar quantias pequenas. (O teto das ações dos juízos especiais é de 60 salários mínimos). Em Belo Horizonte, por exemplo, surgem de 5.000 a 6.000 ações por semana e há 200 mil intimações encalhadas.
 
Apareceu um exemplar de calendário de campanha eleitoral que pode se tornar uma piada para colecionadores. É uma folhinha de parede, de 2002, divulgando a candidatura do deputado federal Ricardo Berzoini. A peça é ilustrada com a comovente fotografia de um avô afagando a cabeça do neto. Feito ministro, o deputado Berzoini mandou o avô para a fila, mas até hoje não se meteu com o netinho. Espera-se que o deixe em paz.

O progresso de Fernando Henrique Palocci


Como parte dos festejos comemorativos do décimo aniversário da ekipekonômica, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, anunciou: "Agora é só desenvolvimento. Chega de pensar em como seria a taxa de juros no ano que vem".
Pena, mas nem original ele foi. Em março de 2000, FFHH prometeu: "Daqui por diante é desenvolvimento, bem-estar e prosperidade. Que não se fazem com palavras, mas com ações".
Desde que FFHH teve esse surto profético, o Brasil cresce a taxas inferiores a 2% ao ano. No discurso em que o grão-tucano prometeu prosperidade, anunciou que concluiria o trecho sulista da BR-101. Parolas. Lula prometeu a mesma coisa e termina o primeiro ano de governo no gogó.
O doutor Palocci diz que "agora é desenvolvimento", mas o trecho inconcluso da estrada tem R$ 43 milhões no Orçamento. Não paga o paisagismo. O BID já avisou que empresta o equivalente a 60% da obra. São US$ 400 milhões.

Entrevista

Roberto Pompeu de Toledo


(59 anos, jornalista, autor de "A Capital da Solidão - Uma História de São Paulo das Origens a 1900")

- O senhor conta em seu livro o que significaram para São Paulo a construção do viaduto do Chá e a abertura da avenida Paulista, ambos inaugurados no início da década de 1890. Que obra teria porte equivalente hoje?
- Uma rede de metrô digna da metrópole. Londres, Nova York, Paris e até Buenos Aires construíram as suas. São Paulo não. Dizem que seria muito caro. Se ao longo dos anos os recursos empenhados em obras viárias, a maioria destinada apenas a transferir o congestionamento um pouco mais para diante, tivessem sido canalizados para o metrô, a rede seria bem maior do que é. O metrô não precisaria necessariamente correr debaixo da terra. Poderia até ter sido aproveitada boa parte do traçado das linhas de bonde. Destruiu-se o bonde o mais rápido possível, em obediência à opção pelo automóvel. Foi um erro pelo qual a cidade paga até hoje, e pelo qual os pobres são castigados com uma das facetas mas brutais da metrópole, que é obrigá-los a três, quatro ou mais horas diárias no deslocamento entre as moradias e os locais de trabalho.
- O livro conta a história de um mirabolante plano, no final do século 19, de trazer o mar para São Paulo. O Atlântico chegaria ao planalto por meio de um sistema de comportas que venceria a serra do Mar e dotaria a cidade de um porto. Paulistano tem mania de mar?
- O plano é revelador de uma relação curiosa da cidade com o mar. Por um lado, o mar fascina, e a falta dele é particularmente dolorosa quando se tem em conta sua exuberante presença na principal rival, que é o Rio de Janeiro. Mas por outro lado, São Paulo com mar não seria São Paulo. Seria Santos. Não estaria aberta à origem de sua riqueza, que é o interior que produzia o café. A relação de São Paulo com as águas em geral é mal resolvida. Já que não tem mar, poderia servir-se dos rios para ganhar em ordem e elegância, como Paris, Londres ou Roma, mas maltrata seus rios. São Paulo é das poucas cidades em que rio é feio e ponte é feia. Com o Tamanduateí a maldade é tamanha que em certos trechos seu leito é coberto por barras de concreto que vão de uma margem à outra. É como se tivessem prendido o rio. Como se o tivessem posto na cadeia.
- A população vivia melhor na virada do século 19 para o 20, período em que o livro se encerra?
- Talvez a pobreza fosse menos aparente. Era um período em que a esmagadora maioria da miséria brasileira estava no campo. As cidades se constituíam em ilhas de relativo bem-estar. Mas os indicadores sociais eram horrendos. Um relatório de 1893 revelou que 69% das mortes ocorridas na cidade naquele ano vitimou crianças de até 15 anos. É um espanto. Quem já leu Dickens ou Balzac sabe que na Inglaterra ou na França as condições sociais também eram ruins. Talvez, em confronto com os padrões internacionais vigentes, São Paulo não estivesse tão defasada. Mas dados como esse desmontam as fantasias românticas de que a vida era melhor. Aliás, nem seria preciso tanto. Basta ter em mente o que era ir ao dentista, cem anos atrás, para não desejar viver nesse tempo.


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