São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

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ELIO GASPARI

O mundo encantado de Gregori

O doutor José Gregori não pode ser demitido do Ministério da Justiça. Enquanto houver um tucano no poder, deve ser mantido no cargo, como representante do modo de pensar da espécie.
Deve-se ao repórter Paulo Fona a revelação de uma de suas reflexões sobre a sociedade brasileira. Gregori conta a história de sua empregada Rose. Maranhense, ela chegou à sua casa em 1995 sem conseguir identificar equipamentos domésticos. Hoje está empregada, cursa universidade, tem celular e faz ginástica. "Em nenhum país há tanta mobilidade social como no Brasil", assegura o ministro da Justiça.
De passagem, enriqueceu a narrativa: Rose conseguiu o emprego por indicação do ministro do Trabalho, Francisco Dornelles.
Gregori deveria ter conduzido sua reflexão de forma diferente: em nenhum lugar se ascende socialmente como em Brasília quando se trabalha na casa do ministro da Justiça e se consegue o pistolão do ministro do Trabalho.
Por falta de acesso a uma indicação de Dornelles ou, quem sabe, por causa da herança escravocrata e da fracassomania da oposição, só na Grande São Paulo há 1,53 milhão de desempregados.
Gregori não deve sair do ministério porque encarna e propaga o costume tucano de confundir o pedaço da floresta onde vive (à custa da Viúva) com um país que teima em não acompanhar o seu estado de felicidade. Até aí tudo bem. Empregou pelo menos duas pessoas (Rose e ele próprio).
Logo depois da reflexão gregória, caiu sobre o governo o relatório da ONU sobre as condições carcerárias e a prática da tortura nos porões da sociedade brasileira. Em 23 dias um funcionário das Nações Unidas visitou cinco Estados e conversou com mais de 200 funcionários. Esteve em 12 delegacias e oito presídios. Listou 348 denúncias nominais de tortura. (O texto integral está na Internet, no seguinte endereço: http://www.undp.org.br.)
Desde o início do governo o doutor Gregori cuida de direitos humanos. Conta a lenda que FFHH mandou-o para a função nos seguintes termos: "Vá para a área de direitos humanos e ocupe esse espaço, faça-a existir". Em dezembro de 1998, com muita honra, ele foi a Nova York para receber um prêmio da ONU pela sua contribuição à causa.
Quando a mesma instituição que o premiou mostrou o que acontece dentro das prisões brasileiras, Gregori disse o seguinte:
"Ao apontar casos de tortura no Brasil, o relatório está se dirigindo a ocorrências sem responsabilidade direta do governo federal."
Ia melhor quando defendia presos políticos durante a ditadura. Encarava torturadores municipais, estaduais e federais.
No poder, Gregori aprendeu a confundir pistolão com mobilidade social. Passou a distinguir tortura federal, pau-de-arara estadual e choque municipal.
Depois de tamanho esforço, não deve descansar.


A aula do outro embaixador Nabuco

Por falar em Joaquim Nabuco, na hora em que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães é defenestrado da direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty, por ter dito que as conversações para a criação da Alca são a "negociação de um patíbulo", chega às livrarias "Reflexões e Reminiscências", de Maurício Nabuco. Como o pai, ele foi embaixador em Washington.
Maurício Nabuco morreu em 1979, aos 82 anos. Foi um dos grandes diplomatas brasileiros. Reorganizou o Itamaraty e preservou até onde lhe foi possível o panachê da carreira. Seus hábitos aristocráticos (jantava de smoking, sozinho) deram-lhe uma marca elitista que sua vida confirma, com muito gosto. Os maus modos alheios confundiram elegância com anacronismo. Fundou um clube de pólo e jogou a primeira partida em benefício das vítimas da seca de 1915. Deixou de ir à casa de um embaixador francês que lhe serviu comida de qualidade inferior à da tradição que representava. Produziu uma esplêndida defesa da conversa fiada. Inventou a "Patente Nabuco", uma ripa branca com furos, onde espetam-se copos de vinho, sem as bases. Sem ter onde pousá-los, os convidados preferem mantê-los cheios.
Uma vez, quando se discutia num jantar o sentido de imortalidade que o filé deu ao político francês Chateaubriand, uma dama perguntou-lhe: "Acha que Mussolini é imortal?"
"Não sei, minha senhora. Ainda não provei o molho."
Seu livro, admiravelmente escrito, divide-se em duas partes. A primeira é a aula de um servidor público a respeito do que vem a ser a diplomacia. A segunda, uma coleção de reminiscências às vezes divertida e muito chata ao final, quando fala de navios.
Na hora em que a diplomacia brasileira é posta em forma para negociar a Alca ao toque da corneta americana e um embaixador é demitido por condenar as bases em que está posta a discussão, vale a pena transcrever alguns ensinamentos de Maurício Nabuco, um conservador sério e americanófilo sincero:
"É exatamente na subserviência e no servilismo que reside o maior perigo para o futuro de nossa política americana."
"A política exterior do governo americano é essencialmente imediatista e restritiva. Por isso, a posição do Brasil em Washington flutua de acordo com o que podemos oferecer."
"A diplomacia econômica, ou sejam os esforços para a expressão de comércio exterior, processa-se por dois métodos principais.
Baseia-se o primeiro em vantagens provenientes de tarifas preferenciais e outras concessões obtidas por tratados gerais ou acordos bilaterais. Em geral, tais vantagens são conseguidas apenas por países poderosos em relação aos mais fracos."
"Desde que Rio Branco morreu, têm-se dado sempre razão aos estrangeiros."


Surgiu no PFL a bancada da Coca-Cola

Surgiu na bancada do PFL na Câmara um discreto movimento destinado a livrar a Coca-Cola da retenção de 15% sobre os US$ 60 milhões que sua fábrica de xarope de Manaus remete anualmente ao exterior para custear a publicidade da empresa pelo mundo afora. A proposta está no bolso de alguns deputados porque foi barrada enquanto se movia na máquina do Executivo.
Os benefícios conseguidos pela Coca-Cola na Amazônia são um excelente exemplo dos absurdos embutidos na legislação que rege os incentivos fiscais para a região. Há as maracutaias da Sudam com suas roubalheiras e com seus empresários de fancaria. No caso da fábrica de refrigerante o problema aparece com limpidez, sem propinas ou corrupção. Pura política pública lesiva ao erário.
Buscando lucros para seus acionistas, a Coca Cola mantém em Manaus uma fábrica de xarope, o concentrado que se transforma na santa bebida. Por funcionar na Zona Franca, goza de isenção tributária. Disso resulta a seguinte belezinha: a empresa e os concessionários do engarrafamento fora da Amazônia ganham em crédito junto à Viúva aquilo que a Coca-Cola não pagou de impostos em Manaus. Criou-se assim uma indústria que à primeira vista produz xarope, mas olhando-a direito, produz créditos.
A Receita Federal tentou baixar a alíquota de produção desse xarope para zero. Assim a empresa não pagaria impostos em Manaus, mas pelo menos a Viúva deixaria de perder dinheiro fora de lá. Não conseguiu.


No baralho

Esteve (e talvez ainda esteja) no baralho dos procuradores que investigam as roubalheiras da Sudam o pedido de prisão preventiva dos três últimos secretários-executivos do Ministério da Integração Nacional. Inclusive, portanto, a de Benivaldo de Azevedo, que deixou o cargo há duas semanas.
O pedido baseia-se na convicção de que as prisões garantirão o bom andamento das investigações.
O Palácio do Planalto não mexerá um só palito para proteger funcionários envolvidos em más práticas que vierem a ser acusados pelos procuradores.


Encrenqueiro

O presidente George Bush reativou os canais de apoio do governo americano ao angolano Jonas Savimbi, chefe da guerrilha da Unita. Homem dos mil instrumentos, já foi maoísta, tornou-se instrumento da África do Sul ao tempo do apartheid e hoje tem um pé na revolução e outro no contrabando de diamantes.
O último gênio americano a se meter com Savimbi foi o professor Henry Kissinger, ao tempo em que era secretário de Estado. Teve tempo para escrever o tamanho de sua lástima no último volume de suas memórias.


Impropriedade

FFHH está comprando um risco desnecessário. Enquanto tenta silenciar a sucessão no PSDB, manobra dentro dos outros partidos para inviabilizar as coligações de Ciro Gomes e a posição de Itamar Franco no PMDB.
Um dia alguém poderá dizer que ele não tem nada a ver com isso. Pior será se alguém vier a mostrar quanto ele teve a ver com o que quer que seja.


A sala do Barão

Foi Maurício Nabuco quem reconstruiu e supervisionou a restauração da sala do Itamaraty onde vivia, dormia e trabalhava o barão do Rio Branco. Esse trabalho incluiu a inscrição de uma frase que percorre o alto das quatro paredes do salão.
Lida a partir da primeira parede, informa, em letras maiúsculas:
"Nesta sala, que foi por muitos anos o seu gabinete de trabalho, faleceu, em 10 de fevereiro de 1912, o grande ministro das Relações Exteriores dos Estados Unidos do Brasil, José da Silva Paranhos, barão do Rio Branco."
Lida a partir da segunda parede, o resultado é outro:
"De trabalho, faleceu, em 10 de fevereiro de 1912, o grande ministro das Relações Exteriores dos Estados Unidos do Brasil, José da Silva Paranhos, barão do Rio Branco nesta sala, que foi por muitos anos o seu gabinete."


DOCUMENTO

Joaquim Nabuco

Em 1999 o professor Antonio Penalves Rocha, da Universidade de São Paulo, achou na Inglaterra 33 cartas de Joaquim Nabuco. Serão publicadas em breve.
Aqui vai um trecho de uma delas, escrita por Nabuco logo depois de ter perdido a eleição para a Câmara, em 1886. Sua leitura é útil por dois motivos. Primeiro, para se conferir como candidato derrotado fica com raiva dos eleitores. No caso, Nabuco sentiu-se traído pelos negros livres. Além disso, mostra como ele se considerava encarnação e depósito daquilo que chamaria de "mandato da raça negra". Quando lhe faltavam os votos, queixava-se da raça e do Brasil.
"Pernambuco, 23 de janeiro de 1886.
As eleições ocorreram no dia 15 do corrente mês, e fui derrotado nesta cidade. A vitória do candidato conservador é inteiramente devida à pressão do governo sobre os empregados públicos, que formam uma ampla porção do pequeno eleitorado desta cidade, e às promessas de emprego profusamente feitas às classes pobres do nosso povo. Enquanto, como um único homem, os grandes donos de escravos e seus dependentes votaram contra mim, os negros, que são numerosos, não foram todos fiéis à nossa causa e, em grande parte, votaram na bandeira da escravidão. Procurei mais de um eleitor negro e solicitei-lhe voto.
Não posso, senhor, prometi votar nos conservadores. Estou comprometido.
Comprometido! Esse pobre homem, na sua ignorância sobre a solidariedade social, não sabe que estava comprometido a votar em mim há dois séculos atrás, quando seus ancestrais foram trazidos como escravos da África, e que sua própria cor ridicularizava sua desculpa de "comprometimento prévio".
Sendo o Brasil tão extensivamente uma nação heterogênea, ninguém mais do que eu se contenta em ver que não há maneira possível de traçar aqui a linha da cor como fronteira política tão distinta como é nos Estados Unidos.
Mesmo a questão da escravidão não criou um sentimento de raça, completamente ausente de toda a nossa história e daí para a nossa atual constituição nacional.
Mas, ao mesmo tempo, esta despreocupação dos negros no Brasil com a questão da abolição, de modo que tão logo deixem de ser escravos e saltem repentinamente para a dignidade de cidadãos e eleitores, livrando-se de qualquer que seja o laço de sangue com sua própria raça escravizada, é mais um sinal de como a humilhação da escravidão penetrou profundamente na alma e no coração da população escrava e da dificuldade que o movimento abolicionista tinha para lutar contra ela no Brasil.
Aqui, de fato, em vez de um sólido voto negro, como na América do Norte, para o partido que levantou o clamor pela abolição, como um débito de gratidão de toda a raça para com os seus libertadores, pudemos ver os negros, salvo honrosas exceções, seguindo a bandeira do partido dos seus antigos senhores como um remanescente da alma escrava ainda viva neles."


Silêncio de monge

O senador Pedro Simon, um dos parlamentares mais respeitados do PMDB, anda calado. Calado demais.


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