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REPRESSÃO
Antiga sede do Dops, que hoje acolhe a Delegacia de Repressão a Entorpecentes, ficará com o Arquivo do Estado
Polícia do Rio perde símbolo da tortura
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
Na próxima terça-feira, às 11h,
quando o ex-analista de informações do DOI-Codi (principal órgão de combate aos opositores do
regime militar) Josias Quintal e a
ex-guerrilheira e ex-presa política
Jessie Jane Vieira de Souza se
cumprimentarem, um pedaço da
história do Brasil trocará de mãos.
Quintal, hoje secretário de Segurança Pública do Rio, e Jessie
Jane, atual presidente do Arquivo
Público do Estado, serão os protagonistas da solenidade de transferência do controle do prédio situado na rua da Relação, 40, esquina com a rua dos Inválidos, no
centro da cidade.
Noventa e um anos após a construção do prédio de três andares,
em 1910 (houve ampliação em
1922), num estilo arquitetônico
chamado de ""francês eclético", a
rua da Relação passará a sediar o
Arquivo do Estado, e não mais repartições policiais.
O que foi um templo da tortura
de adversários políticos de diversos regimes vai se transformar
num centro dedicado à preservação da memória do país.
O local abrigou as polícias políticas da República Velha (até
1930), do primeiro governo de
Getúlio Vargas (1930-45), de Eurico Gaspar Dutra (1946-51), do
epílogo da era Vargas (1951-54),
de Juscelino Kubitschek (1956-61), que transferiu a capital federal para Brasília, e dos Estados da
Guanabara (1960-74) e do Rio de
Janeiro (1974-83).
Ainda hoje o prédio que acolhe
a Delegacia de Repressão a Entorpecentes e a Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos é conhecido como ""sede do Dops". O
Dops (Departamento de Ordem
Política e Social) foi o órgão estadual de polícia política no regime
militar. Em 1983, o governador
Leonel Brizola (PDT) o extinguiu.
Nunca tantos e tão importantes
espiões brasileiros passaram tantos anos tendo o mesmo prédio
como seu quartel-general.
Nunca um espaço de castigo físico sistemático de opositores políticos no Brasil do século 20 teve
existência tão duradoura.
É para lá que vai voltar o arquivo com 2,5 milhões de fichas produzidas pelos agentes secretos em
quase um século, na tarefa cotidiana de bisbilhotar a vida alheia.
O acervo reúne documentos ainda mais antigos, a partir de 1795.
Se os papéis fossem colocados numa pilha, a altura alcançaria 3 km.
Deterioração
Quem entra hoje no prédio se
assusta com o cenário de terra arrasada: vêem-se baratas e pombos
mortos, tetos e divisórias de madeira despedaçados por cupins,
vitrais quebrados, azulejos destruídos, paredes esburacadas.
O elevador com duas portas
rangentes de ferro no saguão é o
mesmo do qual Luís Carlos Prestes viu pela última vez sua mulher,
Olga Benário, conforme relato de
Fernando Morais no livro "Olga".
Era 1936, e no ano anterior o casal
havia liderado um levante contra
o governo Vargas. Alemã, Olga foi
deportada e morreu num campo
de concentração nazista.
No terceiro andar, uma proteção metálica de 2 metros de altura
ainda sobrepõe-se ao corrimão de
ferro. Após a Intentona Comunista, em 1935, o militante norte-americano Victor Allen Barron
morreu ao atirar-se -ou ser atirado- no pátio interno, desesperado com as sessões de tortura a
que era submetido. Resolveu-se,
aí, instalar a proteção.
No mesmo terceiro andar ficava
o Ratão, cela onde o deputado
Fernando Gabeira (PV-RJ) ficou
preso em 1970, quando era guerrilheiro. O nome se devia às ratazanas que atazanavam os presos.
Nem o relógio no alto de uma
torre no pátio funciona: estacionou pontualmente às 11h03 (ou
23h03), não se sabe quando.
Até hoje funcionários dizem ouvir de madrugada barulho de almas penadas, fantasmas de torturados e mortos desde o começo
do século no prédio -de 1924 a
1926, centenas de anarquistas foram encarcerados ali, onde também funcionou o Instituto Médico Legal do Distrito Federal.
Desde 1998 os documentos do
Arquivo do Estado estão armazenados, em lastimáveis condições,
num sobrado emprestado pelo
Metrô, em Botafogo (zona sul).
Alguns estão imprestáveis.
O plano do arquivo é restaurar a
fachada, remodelar as estruturas
elétrica, hidráulica e de concreto e
construir espaços temáticos na
rua da Relação. Para isso, são necessários R$ 5 milhões, a serem levantados basicamente com empresas privadas, que terão o benefício das leis de incentivo cultural.
No mês que vem, a Polícia Civil
vai retirar do local o depósito de
110 mil armas apreendidas -das
quais 100 mil serão destruídas,
com autorização da Justiça. As repartições que lá estão baseadas
também sairão.
A diretora Jessie Jane nega que o
projeto seja o de um museu da
tortura, embora características se
assemelhem às dos museus sobre
o Holocausto erguidos na Europa.
Como concessão à Polícia Civil,
corporação na qual houve restrições à cessão do prédio, será
montado o Museu da História da
Segurança Pública.
Uma faixa colocada por policiais civis está afixada na fachada,
citando bandeira dos advogados
da instalação do arquivo: ""Em defesa dos direitos humanos, este
prédio é nosso".
A Folha tentou ouvir o secretário Josias Quintal na quinta e na
sexta-feiras, mas ele estava incomunicável no interior do Rio.
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