São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

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REPRESSÃO

Antiga sede do Dops, que hoje acolhe a Delegacia de Repressão a Entorpecentes, ficará com o Arquivo do Estado

Polícia do Rio perde símbolo da tortura

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Na próxima terça-feira, às 11h, quando o ex-analista de informações do DOI-Codi (principal órgão de combate aos opositores do regime militar) Josias Quintal e a ex-guerrilheira e ex-presa política Jessie Jane Vieira de Souza se cumprimentarem, um pedaço da história do Brasil trocará de mãos.
Quintal, hoje secretário de Segurança Pública do Rio, e Jessie Jane, atual presidente do Arquivo Público do Estado, serão os protagonistas da solenidade de transferência do controle do prédio situado na rua da Relação, 40, esquina com a rua dos Inválidos, no centro da cidade.
Noventa e um anos após a construção do prédio de três andares, em 1910 (houve ampliação em 1922), num estilo arquitetônico chamado de ""francês eclético", a rua da Relação passará a sediar o Arquivo do Estado, e não mais repartições policiais.
O que foi um templo da tortura de adversários políticos de diversos regimes vai se transformar num centro dedicado à preservação da memória do país.
O local abrigou as polícias políticas da República Velha (até 1930), do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), de Eurico Gaspar Dutra (1946-51), do epílogo da era Vargas (1951-54), de Juscelino Kubitschek (1956-61), que transferiu a capital federal para Brasília, e dos Estados da Guanabara (1960-74) e do Rio de Janeiro (1974-83).
Ainda hoje o prédio que acolhe a Delegacia de Repressão a Entorpecentes e a Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos é conhecido como ""sede do Dops". O Dops (Departamento de Ordem Política e Social) foi o órgão estadual de polícia política no regime militar. Em 1983, o governador Leonel Brizola (PDT) o extinguiu.
Nunca tantos e tão importantes espiões brasileiros passaram tantos anos tendo o mesmo prédio como seu quartel-general.
Nunca um espaço de castigo físico sistemático de opositores políticos no Brasil do século 20 teve existência tão duradoura.
É para lá que vai voltar o arquivo com 2,5 milhões de fichas produzidas pelos agentes secretos em quase um século, na tarefa cotidiana de bisbilhotar a vida alheia. O acervo reúne documentos ainda mais antigos, a partir de 1795. Se os papéis fossem colocados numa pilha, a altura alcançaria 3 km.

Deterioração
Quem entra hoje no prédio se assusta com o cenário de terra arrasada: vêem-se baratas e pombos mortos, tetos e divisórias de madeira despedaçados por cupins, vitrais quebrados, azulejos destruídos, paredes esburacadas.
O elevador com duas portas rangentes de ferro no saguão é o mesmo do qual Luís Carlos Prestes viu pela última vez sua mulher, Olga Benário, conforme relato de Fernando Morais no livro "Olga". Era 1936, e no ano anterior o casal havia liderado um levante contra o governo Vargas. Alemã, Olga foi deportada e morreu num campo de concentração nazista.
No terceiro andar, uma proteção metálica de 2 metros de altura ainda sobrepõe-se ao corrimão de ferro. Após a Intentona Comunista, em 1935, o militante norte-americano Victor Allen Barron morreu ao atirar-se -ou ser atirado- no pátio interno, desesperado com as sessões de tortura a que era submetido. Resolveu-se, aí, instalar a proteção.
No mesmo terceiro andar ficava o Ratão, cela onde o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) ficou preso em 1970, quando era guerrilheiro. O nome se devia às ratazanas que atazanavam os presos.
Nem o relógio no alto de uma torre no pátio funciona: estacionou pontualmente às 11h03 (ou 23h03), não se sabe quando.
Até hoje funcionários dizem ouvir de madrugada barulho de almas penadas, fantasmas de torturados e mortos desde o começo do século no prédio -de 1924 a 1926, centenas de anarquistas foram encarcerados ali, onde também funcionou o Instituto Médico Legal do Distrito Federal.
Desde 1998 os documentos do Arquivo do Estado estão armazenados, em lastimáveis condições, num sobrado emprestado pelo Metrô, em Botafogo (zona sul). Alguns estão imprestáveis.
O plano do arquivo é restaurar a fachada, remodelar as estruturas elétrica, hidráulica e de concreto e construir espaços temáticos na rua da Relação. Para isso, são necessários R$ 5 milhões, a serem levantados basicamente com empresas privadas, que terão o benefício das leis de incentivo cultural.
No mês que vem, a Polícia Civil vai retirar do local o depósito de 110 mil armas apreendidas -das quais 100 mil serão destruídas, com autorização da Justiça. As repartições que lá estão baseadas também sairão.
A diretora Jessie Jane nega que o projeto seja o de um museu da tortura, embora características se assemelhem às dos museus sobre o Holocausto erguidos na Europa.
Como concessão à Polícia Civil, corporação na qual houve restrições à cessão do prédio, será montado o Museu da História da Segurança Pública.
Uma faixa colocada por policiais civis está afixada na fachada, citando bandeira dos advogados da instalação do arquivo: ""Em defesa dos direitos humanos, este prédio é nosso".
A Folha tentou ouvir o secretário Josias Quintal na quinta e na sexta-feiras, mas ele estava incomunicável no interior do Rio.


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