São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NO PLANALTO

O culto a um santo em decomposição

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A devoção é algo sublime. Não há sentimento mais belo. Quando dedicada a um santo fictício, aí mesmo é que ela se torna comovente. Reverenciemos, pois, os que, mãos postas, cultuam o MST.
Em maio, disseram-me que o movimento vinha se desvirtuando. Descri. Mas fiz o que me pareceu mais adequado. Troquei o carpete da redação pelo chão barrento dos assentamentos.
Voltei convencido de que o mais importante movimento social da história contemporânea estava mesmo carunchado. Converteu-se em cáften daqueles que ajudara a içar do limbo social.
Desde então, em reportagens e artigos, venho me ocupando da difusão das evidências de que há um novo MST na praça. Um MST indigno do MST.
A cada texto publicado, recebo um lote de manifestações de solidariedade ao movimento. Chegam via e-mail, pelo correio convencional, por telefone. A adesão é unânime e irrestrita. Mata-se e morre-se pelos defeitos do MST.
O maior feito do movimento foi o de ter dado voz aos habitantes dos fundões do Brasil, trazendo-os para as ruas das grandes cidades. Hordas de miseráveis marcharam diante das janelas dos carros da elite. Saídos do tubo de imagem da TV, os pés rachados pisaram o tapete da sala de estar da classe média. Um espetáculo de beleza épica.
Sacudiram-se consciências bem-nascidas. Muitas não tinham noção de que os subterrâneos do país pudessem ocultar tanta desconsideração social. Aquelas imagens tiveram o efeito de um soco no estômago. E o governo foi como que arrancado de sua inércia.
O MST experimentou um crescimento notável. Das tendas de lona preta, que vicejavam como capim à beira das estradas, os deserdados da sorte foram passando à terra.
Assentados, foram chamados a contribuir com o movimento. Sentindo-se em débito, pingaram uns caraminguás no cesto da causa. Fizeram-no com gosto. Afinal, não fosse pelo MST, Brasília ainda não os teria descoberto.
As contribuições voluntárias logo se mostrariam insuficientes. E o MST passou a beliscar sem dó o bolso de sua clientela. Foi buscar o grosso de seu sustento na verba liberada pelo Incra para o cultivo da terra. Os que reclamavam eram constrangidos, ameaçados.
Pois a escumalha dá sinais de que começa a se cansar do jogo. Ouvida nos quatro cantos, ela dá notícia da existência de um MST muito parecido com os antigos coronéis. Aqueles que, em troca de proteção e de pequenos favores, exigiam obediência e fidelidade.
A diferença é que o neocoronelato não quer encabrestar o miserável apenas pelo voto. Quer amarrá-lo pelo embornal, aliviando-o de parte do dinheiro escasso que recebe do contribuinte.
Súbito, o MST e seus devotos querem que se façam ouvidos moucos para a queixa que vem dos assentamentos. É como se desejassem devolver o náufrago social à sua invisibilidade. É como se conspirassem para desacreditar a voz que ajudaram a amplificar.
Os assentados falam às dezenas. Denunciam um rol de práticas que inclui da truculência à chantagem. Difícil prever quantas vozes ainda terão de se levantar até que o assentado consiga atrair para si a mesma solidariedade jucunda que hoje conforta o MST.
É mesmo malsão o destino dessa gente desapossada. Bastou pôr o pé num pedaço de terra para sofrer um processo de metamorfose. O que era ser humano virou cifrão. Todos sabem que há gente por trá$ do imenso "S" cortado por retas verticais. Mas é gente, por assim dizer, desumanizada.
A República Federativa dos Assentamentos do MST possui regras e Constituição própria. É um país dentro de outro. Está estabelecido que, sob a bandeira do movimento, achacar pode. Desviar dinheiro público também. No mundo particular do MST, o achaque e o desvio não são senão brechas abertas para que o movimento possa respirar.
No terreno retórico, o MST argumenta que apenas exerce "controle político" sobre os assentamentos. Os vereadores paulistanos usavam as mesmas palavras para definir a influência que detinham sobre as administrações regionais da prefeitura. Em São Paulo, como se sabe, "controle político" era o eufemismo sob o qual se escondia uma rede de malfeitorias variadas.
Há bebês que, de bonitos, vão passando a feios à medida que crescem. Assim também com alguns governos e movimentos sociais. Em matéria de aparência, aliás, FHC e o MST trilham picadas vizinhas.
Em comparação com o que veio antes, FHC simbolizava uma perspectiva de evolução plástica. Hoje, ostenta um passivo estético de dar medo. Embora tenha abatido diversas CPIs em pleno vôo, casos como o da compra de votos mancham-lhe a biografia de forma indelével.
O que empresta beleza ao MST é a causa por trás do movimento. Uma causa boa, respeitável. Nada mais perigoso do que a causa justa sustentada por métodos podres. O atual sistema de financiamento do MST induz ao abuso e à corrupção.
Se a causa não fosse boa, alguém já teria perguntado: "Se aos líderes do MST é permitido extorquir dinheiro de assentados, por que o vereador Vicente Viscome e seus comparsas não podem fazer o mesmo com os comerciantes de São Paulo?"
O problema que engolfa o MST nada tem a ver com a reforma agrária, por mais que os ideólogos tentem fazer crer. Convém pôr de lado os dogmas, sob pena de discutirmos o problema errado.
O que se observa nos porões de alguns assentamentos é o velho fenômeno da malversação de dinheiro público. Algo que tanto pode ocorrer num assentamento como na Câmara Municipal de São Paulo.
O leitor pode estar se perguntando: o que leva uma legião de devotos a cultuar um santo em decomposição? Ora, o medo de parecer reacionário. O gesto de solidariedade é sempre mais cômodo do que o debate franco. Ainda que se tenha de fechar os olhos e tapar o nariz.


Texto Anterior: Artes gráficas: Programa chama 40 candidatos para fazer entrevistas
Próximo Texto: Regime militar: Relatório do Exército revela mortes em SP
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.