São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

O Incor gostou da UTI do BNDES

A ameaça de redução do atendimento ao SUS é um seqüestro de serviço público para cobrar resgate à Viúva

A CRISE DO Instituto do Coração é uma viagem a três placas das coronárias da administração nacional: a corrosão das normas da contabilidade pública, o seqüestro das necessidades do andar de baixo pelo conforto do andar de cima e a propensão dos monarcas para usar o erário como poupança privada. Reunido com os representantes do Incor, Nosso Guia praticamente intimou o ministro da Fazenda, Guido Mantega, a facilitar o crédito para tirar a instituição do buraco. Parecia D. João 3º dando a ilha de Itaparica à mãe do conde de Castanheira.
A Fundação Zerbini, que administra o Incor, está falida. Deve R$ 245 milhões (dois AeroLulas), metade ao velho e bom BNDES. Não quebrou por falta de pacientes, muito menos por má medicina. Arruinou-se pela leviandade financeira de sua expansão e porque montou uma sucursal em Brasília, para atender os maganos da "bancada do coração". O governador Cláudio Lembo chegou a lembrar que "a fundação esteve presente em Aruba, com um hospital fora do Brasil". A dívida com o BNDES é velha, de 1998. Ela já foi renegociada em 2003, com direito a desconto e prorrogação do vencimento de 2001 para 2014.
Para desobstruir as contas do Incor, o BNDES precisa de um fiador na banca privada. Até agora, essa boa alma não apareceu. Custa pouco perceber que o hemograma financeiro do instituto inquieta quem o examina. Nas palavras do diretor-executivo do Incor, David Uip, "precisamos de um empréstimo em que haja período de carência, juros baratos e alongamento da dívida". Só?
Até aí, seria o jogo jogado. Um hospital público arruinou-se e precisa de ajuda do erário. Esse raciocínio protege não só o Incor mas também as Santas Casas. Como não dispõem de um plantel "pacientes de grife", falta de sorte delas.
O Incor funciona com 79% de seu atendimento para segurados do SUS, e 21% para clientes da rede privada de saúde ou particulares. Metade da sua receita anual de assistência vem de impostos pagos pela patuléia, 25% vem do SUS e outros 25% dos convênios privados. Computando-se o que a Viúva financia em pesquisas, a contribuição da choldra aumenta.
Diante da bancarrota, surgiu a ameaça de redução da percentagem de procedimentos à clientela do SUS de 79% para 75%. A menos que o BNDES (montado no dinheiro do FAT, arrecadado junto aos trabalhadores) faça um empréstimo camarada, o andar de baixo ficará com menos Incor. Caso clássico de seqüestro de um serviço público para exigir resgate à Viúva.
Em 1963, quando o cardiologista Euriclides de Jesus Zerbini criou o Incor, a medicina de São Paulo não era o que é hoje. Prevalecia a do Rio de Janeiro, onde uma aristocracia acadêmico-hospitalar embaralhara a medicina pública com sua clientela privada. O Rio tinha médicos famosos com grandes clínicas particulares. São Paulo tinha médicos notáveis trabalhando em grandes instituições públicas. Os "pacientes de grife" da segunda metade do século passado eram atendidos no Hospital dos Servidores do Estado. Como sucede hoje no Incor, seus médicos eram íntimos dos Poderes da República. Renegociavam verbas e recomendavam amigos. Viraram sucata.
O diretor do Incor, Jorge Kalil Filho, disse à repórter Adriana Dias Lopes que "talvez tenha sido uma opção romântica continuar com o atendimento público". Nada é mais romântico do que tomar dinheiro emprestado na praça para depois internar (de novo) o Incor na UTI do BNDES.


Texto Anterior: Estatais: Presidente da Radiobrás diz que enfrentou insatisfações
Próximo Texto: Filho de ex-governador é preso no Pará
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.