São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 1997.

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Elio Gaspari


Uma ``História do Mundo'' contada a partir dos preços
De vez em quando, tanto em discursos quanto em conversas sem rumo, FFHH solta uma idéia segundo a qual o fim do século 20 coincide com o início de um Renascimento na história humana. Quando dá um tempero econômico a essa idéia, diz que se está iniciando um ciclo de prosperidade mundial. Nas poucas vezes em que apresentou a versão erudita da teoria, mencionou o início de mais um ``ciclo de Kondratieff''. (Economista russo que colaborou com Lênin e desenvolveu uma teoria de ciclos de progresso e recessão a cada 50 anos. Stalin mandou-o para a Sibéria, onde ele morreu nos anos 30, porém o manteve na Academia de sábios econômicos até o final dos 40.)
A idéia é simples: vivemos um Renascimento e Fernando, o Magnífico, é seu Príncipe.
Pois FFHH fica devendo ao professor americano David Hackett Fischer, da Universidade Brandeis, a publicação de um livro que documenta e por pouco não ampara sua intuição. Chama-se ``A grande onda - As Revoluções dos Preços e o Ritmo da História'' (``The Great Wave - Price Revolutions and the Rhythm of History'', editado pela Universidade de Oxford.)
Consolidando meio século de estudos sobre a relação dos preços com a vida dos povos, Hackett Fischer não desenvolveu uma idéia original, mas aprofundou radicalmente pesquisas e conclusões alheias. Estudou as variações de preços dos escravos e do azeite na Babilônia de Hamurabi até o mercado de Salvador da Bahia no século 18.
Ele sustenta que nos últimos 800 anos o mundo teve quatro ``Revoluções de Preços'', que sempre acabaram em explosões inflacionárias. Entre cada uma delas ocorreram períodos de estabilidade e esplendor: o Renascimento do século 15, o Iluminismo do 17 e a Era Vitoriana do 19. Atualmente o mundo assiste ao último estágio da Revolução de Preços do Século 20.
Manipulando as últimas novidades em matéria de pesquisas, ele ensina que a inflação européia dos séculos 16 e 17 foi influenciada, mas não foi provocada pela chegada da prata mexicana ao continente, como tanto gostam de repetir os monetaristas. A análise química das moedas da época mostra que os lingotes das minas de Potosi apareceram um século depois, anos depois dos primeiros sinais de carestia.
Maganos querendo receber da viúva em ouro e pagando a patuléia em moedas podres não são uma invenção brasileira. Os comerciantes italianos faziam isso na Idade Média. No século 14 o congelamento de preços era considerado ofensa à vontade divina. Foi um ciclo de carestia associado à voracidade da nobreza que disparou a Revolução Francesa. A Bastilha caiu no mesmo dia em que o preço do pão bateu o recorde de alta. Nos 20 anos seguintes mataram-se três reis.
De 1822 até mais ou menos o início do século 20, os preços ficaram praticamente estáveis (salvo nos EUA, por conta da guerra civil), os salários subiram, e os juros baixaram. Esse período de prosperidade se confunde com a época em que viveu a Rainha Vitória, da Inglaterra. Depois de sua morte a carestia começou a voltar, agravou-se a partir de 1940 desembestou nos 70. Hackett Fischer não gosta da inflação pelo que ela tem de perversa para baixo, mas gosta ainda menos das recessões. Ele não diz que a alta dos preços já acabou, muito menos que começou o período de equilíbrio dos príncipes. Sustenta que a onda do século 20 está no final, talvez no seu momento mais crítico.
O maior medo do professor é a idolatria do mercado como mecanismo exclusivo de saída das crises de preços. Nas suas palavras:
``O livre mercado restaurou o equilíbrio no século 14, mas só depois da peste negra (que matou perto da metade dos europeus). Fez isso de novo no século 18, mas só depois que uma crise destruiu a paz da Europa. O mercado livre restaurou o equilíbrio na Era Vitoriana, mas foi posterior à carnificina das guerras napoleônicas. Em resumo, a receita de deixar tudo na mão do mercado provocou uma escala de sofrimento inaceitável e desnecessária.''
O Sofá-Serra
Um mistério ronda a boataria da volta do senador José Serra ao ministério.
Quando ele saiu, era acusado de atacar o câmbio, rogar praga nas contas externas, pretender forçar um aumento das exportações e aumentar o déficit público.
O câmbio hoje é atacado por boa parte dos sábios da ``ekipekonômica'' que futricavam Serra. As contas externas bateram recorde de ruindade. As exportações mirraram. O déficit, sem Serra, ficou no dobro do que esperavam seus adversários, todos ``muy'' austeros com o pescoço dos outros.
Do jeito que as coisas estão, seu retorno seria nova forma de se contar uma velha piada: descoberto um estranho na sala (fazendo aquilo que todo mundo sabe), manda-se trazer de volta o sofá.
De fora
O deputado Luiz Eduardo Magalhães não quer ser ministro. Se FFHH quiser levá-lo para o governo, terá trabalho.
A 9 é do Francis
Gianni Versace, dono do restaurante Bravo Garavelli, na rua 63 Leste, entre Segunda e Terceira Avenidas, decidiu rebatizar a sua mesa número 9 (no canto extremo da direita, para quem entra). Ela se chamará Paulo Francis Table.
Era a mesa predileta do jornalista Paulo Francis e será a única do restaurante a levar nome, em vez de número. Outros clientes de Gianni, como Anthony Quinn, Sidney Poitier e Bill Cosby, continuarão sendo homenageados com retratos autografados na escadaria, mas só Francis terá placa na mesa.
Será a justa homenagem para um jornalista que em 66 anos de vida tirou a maior parte de seus prazeres bebendo, comendo e conversando com os amigos numa mesa de restaurante.
Sérgio Motta criou a modernidade do atraso
Duas ofertas de serviços de telefonia celular feitos aos nova-iorquinos nos últimos dias permitem uma avaliação da qualidade do mandarinato do engenheiro Sérgio Motta no Ministério das Comunicações.
Por US$ 25 ao mês, a ATT oferece até cem minutos de ligações locais grátis ao ano. Para chamadas de longa distância, a bonificação é de 30 minutos. Nos dois casos a promoção vale para o horário noturno e para os fins de semana. Dá também um desconto de até US$ 200 na compra de um celular Motorola, e mais 20% em cima de qualquer acessório dessa marca.
Faz isso porque sua concorrente, a Bell, cobra US$ 19 por mês, deixa de graça o primeiro minuto de qualquer ligação e dispensa até seis meses de chamadas de fim-de-semana. Isso para impulsos locais. Para fora da área, oferece três horas grátis. No pacote, por US$ 50 o cliente leva o aparelho.
Em dois anos de ministério, Motta administra uma demanda reprimida de 5 milhões de assinantes e uma fila de mais de 1 milhão de pessoas. No eixo Rio-São Paulo um aparelho custa mais de R$ 2.000, dinheiro suficiente para ligar um americano à ATT até o fim do segundo mandato de FFHH. A Telerj cobra R$ 40 por mês. Como bonificação, dá dor de cabeça.
A privatização dos celulares resguardará uma parte da clientela compulsória das telefônicas estaduais e reservará o mercado para as empresas que entrarem no negócio, protegendo-as num nível de concorrência incomparavelmente menor que o americano, o inglês ou o alemão.
No início do governo, em 1995, Motta dizia em público que trabalhava para privatizar rapidamente o mercado de telefonia celular. Trabalhava mesmo para reeleger FFHH. Resultado: no Piauí há celulares às mancheias e não os há no Rio nem em São Paulo. Quando houver, serão necessários alguns anos para que os usuários recebam ofertas semelhantes às que são produzidas hoje pela concorrência do mercado americano.
O Bloco das Seguradoras pode até trabalhar
O que há de mais triste no Bloco das Seguradoras, cuja comissão de frente desfilou pela Europa durante o Carnaval, é a comparação do seu desempenho cosmopolita com o interesse dos parlamentares (incluídas aí as lideranças governistas) pelos trabalhos da Comissão Especial da Câmara que discute a regulamentação dos planos de medicina e seguro-saúde privados.
No Bloco das Seguradoras contaram-se 18 deputados e três senadores (nove fora as senhoras). Desde outubro, quando foi instalada a Comissão Especial dos Planos de Saúde, jamais apareceram 21 parlamentares interessados em ouvir as pessoas convidadas às suas audiências públicas.
No dia em que lá apareceu o representante da Federação das Seguradoras, não eram mais de dez os deputados presentes. Ou seja: os sabiás do seguro gorjeiam melhor na França que em Brasília.
A Comissão Especial da Reeleição (que cuidou da saúde do tucanato) teve toda a atenção do governo. A Comissão que cuida da saúde daquele coro que canta para FFHH com ``a voz rouca das ruas'', nenhuma. Os deputados que a integram trabalham quase que por amor às causas que defendem, e elas são muitas.
Essa situação é triste porque a regulamentação dos planos de medicina e saúde privados mexerá com a vida de 40 milhões de pessoas. Até agora, os depoimentos prestados à Comissão em pouco superam a marca da mediocridade. Em matéria de números, são pobres como um indigente do SUS. Em matéria de idéias, formam um diálogo de surdos. Um lado quer que qualquer tipo de seguro (mesmo aqueles de R$ 100 por mês) cubra todo tipo de doença (mesmo a de R$ 1 milhão). O outro acha razoável que os segurados idosos possam ter o seu prêmio reajustado ao sabor dos balanços das seguradoras. Na legislação americana, uma das mais impiedosas do mundo, se o cidadão faz um seguro-saúde aos 55 anos, a companhia só pode reajustá-lo 20 anos depois se esse reajuste atingir todos aqueles que se seguraram aos 55 anos. Ainda assim, precisa de licença de um órgão fiscalizador.
Na geléia geral que vigora em Pindorama, o trabalhador perde o plano de saúde da empresa quando ela o manda embora. Novamente no caso americano, a maioria republicana do Congresso aprovou um dispositivo, cujas iniciais formam a sigla ``Cobra'', pelo qual o cidadão continua coberto por 18 meses, e sua família, por 36. Como não há almoço grátis, o desempregado tem que pagar à seguradora a mensalidade que a empresa deixou de recolher. Ainda assim faz bom negócio, porque os planos coletivos são muito mais baratos que os individuais.
Bem que o senador Antonio Carlos Magalhães e o deputado Michel Temer poderiam pedir aos 21 parlamentares do Bloco das Seguradoras que passassem a frequentar as reuniões da Comissão Especial dos Planos de Saúde. Se não tiverem o que ensinar, talvez tenham o que aprender.
Ninhos de perigo
Fechada a contabilidade do balcão da reeleição, verificou-se que em alguns setores da administração os padrinhos eram capazes de derramar sangue pelos apadrinhados. Os dois casos mais sérios foram localizados no DNER e nos serviços de produção e distribuição de medicamentos do Ministério da Saúde.
Como a essa singularidade se junta uma grande quantidade de denúncias de mau uso do ervanário da viúva, pode-se supor que vai ficar difícil a vida dos apadrinhados que sobreviveram ao primeiro turno da votação.
Bananal cambial
Agora que o governo acordou para os perigos da farra das importações e do engessamento das exportações, verifica-se que o bananal econômico se tornou bem mais complicado que uma simples questão de política cambial.
Um exemplo do emaranhado de dificuldades pode ser visto na economia cearense.
O Ceará tinha um pequeno parque têxtil e uma razoável lavoura de algodão. Com as importações de pano, o algodão está indo com a breca. No último ano a produção caiu em 50%, e no ano que vem ela pode acabar. Em contrapartida, a indústria têxtil cresceu 10%. Gerou empregos qualificados, mas empregou muito menos gente.
A esta altura, se o governo quiser resolver o problema com um simples reajuste cambial, quebra a indústria. Ela importa com taxas de juros de 5% ao ano, contra 30% na praça nacional. Comprando-se algodão nativo, ao preço dos juros patrocinados pelo governo, desaparece qualquer sonho de competitividade do parque têxtil cearense.
A abertura da economia, como está sendo feita, gera mais empregos na China do que no Brasil. Isso porque a abertura chinesa estimula a produção (e a lavoura), enquanto a brasileira facilita a intermediação (e a usura).

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