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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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ELIO GASPARI

O tucano foi embora baixando a Lei da Venda

Vigora desde quinta-feira da semana passada a Lei da Venda, decretada pelo professor Fernando Henrique Cardoso no fim de dezembro, quando o caminhão da mudança já estava recolhendo suas coisas no Alvorada. Ela restringe o acesso dos brasileiros aos papéis da administração pública.
Coisa simples. Um documento classificado como "reservado" estava protegido dos olhos da patuléia por até cinco anos, prorrogáveis por mais cinco. Cardoso mandou fechá-los por dez e mais dez. Os papéis marcados como "confidencia" estavam protegidos por dez anos, prorrogáveis por mais dez. Cardoso dobrou: 20 e mais 20. Já os "secretos" ficavam no escuro por 20, igualmente prorrogáveis. Agora são 30 e mais 30. No topo da lista, os "ultra-secretos" só podiam receber essa classificação do presidente da República ou dos chefes dos Poderes Legislativo e Judiciário. Ficavam protegidos por 30 ou até 60 anos. Agora são 50 ou a eternidade, por decisão dos ministros e comandantes militares.
Um papel "reservado" de 2 de janeiro de 1995, primeiro dia de despachos de Cardoso, pode ser liberado amanhã, mas, legalmente, pode ficar fechado até 2 de janeiro de 2005, ou mesmo 2015. Aos 71 anos, o professor determinou que o primeiro papel "confidencial" de sua administração possa ficar trancado até 2015, ou 2035, quando festejará seu 98º aniversário. Um papel "reservado" de Lula só sairá da zona de sombra em 2012, ou 2022.
É uma pena que o professor Cardoso tenha feito isso sem consultar o Arquivo Nacional, exatamente quando comemorava a reforma física da instituição, na qual consumiram-se R$ 26 milhões. Fazer coisa desse tipo sem ouvir o Arquivo deixa um forte cheiro de queimado. Com uma das mãos, usou o dinheiro da Viúva e dos doadores privados. Com a outra, cerceou o acesso dos brasileiros ao conhecimento do que fazem os governos, sobretudo o seu. Fez um bonito arquivo, para esconder os papéis.
Com os prazos do professor Cardoso, americanos e brasileiros poderiam só vir a conhecer em 2024 a extensão do projeto de intervenção militar americana no Brasil em 1964 -a Operação Brother Sam. Ela é pública desde 1976.
Proposta: presidindo um governo comprometido com a transparência, Lula manda ao lixo a Lei da Venda e restabelece a situação que vigorou durante os oito anos do tucanato.

Governo velho

Em menos de dois meses, o governo de Lula não é bom nem ruim. É apenas velho.
Um governo é velho quando lança um pacote de 14 pontos e no dia seguinte não há um só bípede capaz de se lembrar do que se tratava.


Riscos do amor

O deputado João Paulo começou o seu mandato de presidente da Câmara parecendo esquecer-se de uma lição para quem senta naquela cadeira. Deve parecer tão distante quanto possível do Planalto. É o melhor modo de atendê-lo.
Do contrário, os deputados podem pensar numa reforma política que lhes permita oferecer o cargo ao chefe da Casa Civil, para que acumule as duas funções.


Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música, a impostos e ao pernosticismo das ekipekonômicas de todas as crenças. Concedeu mais uma de suas bolsas de estudo ao conselheiro (da Petrobras, R$ 2.800 por mês) Antonio Palocci pela seguinte pérola sobre a reforma tributária:
"O novo sistema (...) deve buscar modelo aderente à realidade e evitar experimentalismos tributários".
Madame acredita que o ministro vai lançar algum produto de higiene.


Brady Tyson

Sem fazer barulho em torno de si, como viveu por quase 75 anos, morreu há cerca de três semanas, no interior do Texas, o professor e pastor americano Brady Tyson.
Estudava a vida brasileira e infernizou a ditadura militar. Amigo de Martin Luther King Jr., foi um dos intelectuais que fez a cabeça do presidente Jimmy Carter na sua política de defesa dos direitos humanos.
Tyson foi gentilmente convidado a sair do Brasil em 1965. Tinha uma flâmula da Polícia Federal em seu escritório. Ria dela.

BNDES prepara o pacote de crédito colonial

As relações entre uma colônia e sua metrópole funcionam de acordo com as leis do mercado, desde que a colônia pague e a metrópole receba. Coisa assim:
O governo de Lula prepara um pacote para socorrer a Eletropaulo e a Light com o velho e bom dinheirinho do BNDES. A Eletropaulo é controlada pela companhia americana AES e, entre 1998 e 2001, remeteu à matriz US$ 318 milhões em dividendos. Ou seja, o dinheiro pode sair de São Paulo para a Virgínia, onde fica a sede da AES. Sair da Eletropaulo para pagar dívida vencida no BNDES, nem pensar.
Nos últimos 12 meses a empresa deixou de desembolsar (rolou, diriam os amigos) algo como US$ 625 milhões para o BNDES, dinheiro equivalente a todos os recursos da Segurança Alimentar (o da fome) e do Ministério do Desenvolvimento (o do emprego).
Isso seria pouco se não houvesse um arremate. A AES perdeu US$ 3,5 bilhões nos Estados Unidos, depois de reescalonar US$ 800 milhões na banca local. Aceitou uma condição contratual de não repassar nem um centavo desse dinheiro às suas subsidiárias, inclusive a de Pindorama.
O dinheiro dos paulistanos vai para os Estados Unidos, mas o dos americanos não pode vir para São Paulo. Já a grana do BNDES, colhida dos nativos, pode reforçar as contas dos americanos, mesmo que eles não estejam pagando o que devem. O velho e bom BNDES salva também os maus empréstimos feitos pela banca nativa.
Uma coisa é certa: no capitalismo americano coisas desse tipo não acontecem. No brasileiro, quando a Eletropaulo não paga ao BNDES, suas ações sobem na Bolsa, pois o mercado entende que a Companheira Viúva vai comparecer com o dinheiro da choldra.

Nabulion, o pai de todos os ditadores

Saiu um livro atrevido, dissonante, curioso como o Carnaval. É "Napoleão", do escritor inglês Paul Johnson. Coisa para descascar num fim de semana. São 212 páginas, das pequenas, escritas por um mestre da expressão. Paul Johnson não gosta de Napoleão: "Nenhum dos ditadores do trágico século 20 -desde Lênin, Stálin e Mao Tsé-tung até tiranos pigmeus como Kim Il Sung, Castro, Peron, Mengistu, Saddam Hussein, Ceausescu e Gaddafi- deixou de exibir traços específicos do protótipo napoleônico". Também não gosta da Revolução Francesa: "Criou o moderno Estado totalitário".
Paul Johnson é mais do que um intelectual conservador. É um erudito reacionário, fantástico nas duas condições. Um exemplo de seus domínio da narrativa: Napoleão não usava medalhas no uniforme durante as batalhas. O duque de Wellington, seu vencedor em Waterloo, também não. E daí? Lord Nelson, o grande almirante de Trafalgar, morreu durante o combate porque um atirador francês viu o reflexo de uma de suas condecorações.
O Napoleão de Johnson é boa leitura para quem já pensou em ser Bonaparte ou já leu alguma coisa falando bem dele. Agora lerá que ele se chamava Nabulion Buonaparte e sua mãe namorara um conde que o colocou na Escola Militar. Ele pensou em se alistar na Marinha inglesa e na guarda do sultão da Turquia. Sua mãe política foi uma hiperinflação de 2.000%. Comandava uma família de sicofantas, apoiado em generais larápios. Transformava vagabundos e um contrabandista (Massena) em marechais de França. Em 1815, pensava ter 20. Dez faltaram-lhe, oito mudando de lado e dois escafedendo-se. Perdia em torno de 50 mil homens por ano numa campanha, enquanto Wellington, seu rival, numa briga menor, perdia 6.000. Matou 4.500 prisioneiros egípcios a pauladas, para não desperdiçar munição.
Foi o primeiro ditador a convocar uma eleição para fraudá-la e o primeiro monarca moderno a empregar um marqueteiro. Era Vivant Denon, o arquiteto da rua do Rivoli, pai do Museu do Louvre. Comprou a intelectualidade francesa, quase toda a européia. Não há quem não o imagine, imponente, dizendo à tropa: "Soldados, do alto destas pirâmides, 20 séculos de civilização vos contemplam". Johnson lembra que a tropa estava semi-amotinada e ele assistia ao saque de uma plantação de melancias.
Nem tudo é fel. Johson atribui a Napoleão uma descomunal capacidade de ler mapas, de orientar-se e de mover suas tropas. Isso e mais vontade de atacar.
Informação irrelevante, mas inesquecível: O 18 Brumário, dia do golpe militar que tornou Bonaparte governante vitalício, corresponde ao 13 de dezembro. Até que enfim, o dia em que a ditadura brasileira decretou o AI-5 conseguiu, na coincidência, uma migalha de fama.


ENTREVISTA

Ralph Della Cava

(68 anos, da Universidade Columbia, biógrafo do padre Cícero em "Milagre em Juazeiro")

-Depois de ter participado das grandes passeatas contra a guerra do Vietnã, o sr. não se sente meio sozinho, manifestando-se contra o ataque ao Iraque?
-Engano seu. A primeira manifestações contra a guerra do Vietnã a que fui tinha menos de 200 pessoas. Em outubro, tivemos mais de meio milhão de manifestantes nos Estados Unidos. Houve manifestações em Nova York, San Francisco e Washington. Há manifestações em todas as grandes cidades do mundo, inclusive no Rio. Estou pronto para protestar contra essa guerra mesmo que minha mulher, Olga, e eu sejamos os únicos a gritar. Está em questão o direito do presidente dos Estados Unidos de decidir atacar um país onde há um governante de quem não gosta. Bush anunciou que poderá usar todos os meios contra o Iraque. Deixou subentendido o uso de armas bioquímicas e nucleares táticas.

-Bush é doido?
-Ele representa três grupos muito poderosos no presente momento americano. O primeiro é uma nova plutocracia armamentista, petrolífera, privilegiada. Ela produziu fracassos como a falência da Enron e será beneficiada pelo governo com um orçamento de defesa de US$ 430 bilhões de dólares por ano. É quase o PIB brasileiro, dez vezes mais que o segundo orçamento militar do mundo, o chinês. O segundo grupo é uma direita cristã, evangélica que crê numa guerra profética. A coisa seria assim: com a chegada do povo judeu à terra prometida (Israel), surgiria o Anticristo (Saddam ou a ONU, você escolhe). Com a ajuda de Deus, Satanás seria vencido. Finalmente, há na Casa Branca um ninho de ultrafalcões. São o vice-presidente Richard Cheney, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld e sobretudo, seu subsecretário, Paulo Wolfwitz. Depois do 11 de setembro, numa reunião em Camp David, Wolfwitz defendeu que nada se dissesse contra o Afeganistão, porque era uma região complicada. Propunha invadir o Iraque, porque seria mais fácil. O que uma coisa tinha a ver com a outra? Nada.

-O que o sr. acha que o governo brasileiro devia fazer diante de uma provável guerra? Ficar contra, irritando Bush?
-Acho que Lula já se associou à posição franco-germânica, que é crítica da atitude americana. Acho que o Brasil, como todos os países, devem tomar suas posições consultando o patrimônio moral de suas histórias e de seus governos. As consequências imediatas, em muitos casos, são enganadoras.


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