São Paulo, Segunda-feira, 16 de Agosto de 1999
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ENTREVISTA DA 2ª
Formação de oficiais no país é deficiente, diz historiador

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

A formação de oficiais no Exército brasileiro é limitada porque os alunos têm sua independência restrita pela falta de abertura do curso e por a instituição ser mais fechada à sociedade do que nos EUA, por exemplo. Essa é uma das opiniões de um dos principais especialistas em Exército brasileiro, o norte-americano Frank Daniel McCann, 55, historiador da Universidade de New Hampshire.
Ele é autor de um clássico estudo sobre as relações militares entre Brasil e EUA na Segunda Guerra, "The Brazilian-American Alliance, 1937-1945" (1973).
McCann veio ao Brasil para participar de encontros em universidades. Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha.

Folha - Por que o sr. acha o Exército brasileiro mais fechado à sociedade que o americano?
Frank McCann -
Principalmente porque as portas de entrada são múltiplas nos Estados Unidos, e aqui a Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) é a única porta para os oficiais de carreira. Lá existem muitas unidades de ROTC (Reserve Officer Training Corps) nas universidades, o oficial pode ter uma preparação, como eu, em história, ou em biologia. A academia de West Point é apenas mais uma porta de entrada, existem também outras academias.
E há diferenças nos currículos. West Point visa formar os futuros generais, Agulhas Negras pretende formar tenentes. O currículo é deliberadamente feito de modo a não dar tempo aos cadetes pesquisarem além daquilo que se pede nas apostilas.
Os líderes do Exército acreditam que os cadetes são jovens demais para pesquisar e chegar a conclusões independentes; isso seria só para mentes mais maduras, como já ouvi de um ex-ministro do Exército.

Folha - O sr. está escrevendo um livro sobre o Exército brasileiro entre 1889 e 1937 ou 1945. Quais as características principais do Exército nesse período?
McCann -
O Exército primeiro está funcionando como agente de mudança de regime, do Império para a República, e mais tarde vai ter papel similar na época do Estado Novo. Quando o serviço obrigatório foi criado em 1908 e começou a funcionar em 1916, o Exército estava se abrindo para a sociedade, tirando soldados da sociedade em geral.
Os oficiais achavam que o Exército seria uma grande escola. Dependendo do ano, ele só tinha um total de 30 mil homens, e a cada ano mudava uma parte. Antes de 1916 era um Exército profissional, então passou a ser de cadres, tentando criar um corpo de oficiais com experiência em treinamento e um grande número de soldados da reserva treinados.
Mas o que aconteceu foi que o Exército não criou uma verdadeira organização da reserva, como existe nos EUA e em certos países europeus, com soldados treinando uma vez por mês. Criou-se um Exército de reserva fictício.

Folha - Quando o Exército brasileiro passa a ser profissionalmente mais apto?
McCann -
A grande mudança foi depois de 1913, quando oficiais treinados na Alemanha voltam para o Brasil e começam a espalhar as lições que aprenderam. Foi o começo da mudança.

Folha - E a missão militar francesa? Teve um impacto duradouro ou foi submergida pela posterior influência americana?
McCann -
O treinamento de cada oficial é uma coisa bastante particular. Um dos grandes alunos do Exército francês foi Castello Branco. É difícil pensar que, quando ele começa a treinar com o Exército americano, tenha esquecido tudo o que aprendeu com os franceses.
Para mim, a grande diferença entre esses Exércitos todos foi e ainda é que os franceses e americanos são muito dependentes dos sargentos. Seria impossível imaginar o Exército americano funcionando sem os sargentos. Mas os sargentos no Exército brasileiro não têm o mesmo nível, o mesmo respeito.

Folha - Um artigo seu no livro "Modern Brazil", de 89, mostra que o cadete de Agulhas Negras vem cada vez mais de um nível econômico inferior, cada vez mais há cadetes filhos de cabos e sargentos. Que impacto isso pode ter?
McCann -
Eu lembro disso ao ver cadetes na sala de jantar tendo de aprender regras de etiqueta. Mas eu acho que um corpo de oficiais que vem da elite seria mais distante do povo brasileiro. É bom ter mais oficiais que chegaram de níveis mais modestos.

Folha - A Força Expedicionária Brasileira da Segunda Guerra teve algum impacto nas relações internas do Exército?
McCann -
O Brasil foi convidado a manter tropas na Europa após a guerra, mas o governo decidiu não fazê-lo, pois teria que pagar por isso. Se tivessem ficado soldados brasileiros na Europa, a participação política do Brasil no pós-guerra teria sido outra coisa.

Folha - O Exército transformou as batalhas de Guararapes, na guerra contra os holandeses, em uma data importante, dizendo que foi a origem do Exército. Qual a sua opinião sobre isso?
McCann -
Isso é uma prática bastante velha. Mas colocar Guararapes como o momento real em que o Exército nasceu, isso tem pouca base histórica.

Folha - O sr., que escreveu um livro sobre a aliança entre Brasil e EUA na Segunda Guerra, o que acha do atual medo dos militares brasileiros, de que os americanos invadam a Amazônia algum dia?
McCann -
Eu acho que isso não passa de uma caça a fantasmas, não tem o menor sentido. O povo americano não aceitaria esse tipo de envolvimento, basta ver a dificuldade que foi para intervir em Kosovo.


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