São Paulo, domingo, 16 de outubro de 2005

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JUDICIÁRIO

Apuração da Procuradoria aponta para manipulação de sistema na distribuição de pelo menos 22 processos entre 1994 e 2004

TRT-SP é investigado sob suspeita de fraudes

ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo está sob investigação do Ministério Público Federal por suspeita de fraudes na distribuição de pelo menos 22 processos entre 1994 e 2004.
Há fortes indícios de que os sistemas informatizados do órgão, por meio dos quais os autos são distribuídos, foram manipulados a fim de definir, antecipadamente, o juiz -ou colegiado de juízes- que atuaria nos casos. Tudo à revelia da lei e do regimento interno do tribunal, que normatizam a distribuição por sorteio.
Até o momento, conforme apurou o Ministério Público, os elementos mais contundentes indicariam que as fraudes estão relacionadas à distribuição, no TRT-SP, de processos oriundos de primeira instância, que são levados ao tribunal, pelas partes interessadas, com o objetivo de conseguir modificar decisões tomadas por juízes de varas trabalhistas.
Em nota, a presidente do TRT-SP, juíza Dora Vaz Treviño, afirma que "são gravíssimas as suspeitas levantadas pelo Ministério Público Federal" e que, "se irregularidades tiverem sido efetivamente praticadas, os honrados juízes e os servidores deste tribunal saberão dar resposta à altura".
Também há indícios, segundo a Procuradoria, de irregularidades praticadas na distribuição de processos que começam a tramitar diretamente pelo tribunal, como os mandados de segurança.
No TRT-SP, a remessa desse tipo de ação a seu destino é feita em um computador portátil, que substituiu o sorteio de bolinhas giradas dentro de uma esfera, à semelhança de um bingo -usado para garantir a imparcialidade na distribuição e, conseqüentemente, no julgamento da causa.
Ainda não há elementos que permitam indicar os beneficiários ou os executores das fraudes. Porém, devido a seu dever funcional de zelar pela lisura da distribuição, os servidores responsáveis por tais procedimentos são alvo da apuração nesta fase inicial.
Maior tribunal da Justiça especializada do país, o TRT-SP recebeu ao todo 76 mil processos em 2004. Em fase inicial da investigação, a Procuradoria analisou 160 processos que tramitaram no órgão entre 1994 e 2004. Levantou, até agora, indícios de irregularidades em 22 deles. Desse conjunto, 20 foram distribuídos quando o servidor Flávio Bulcão Carvalho ocupava o cargo de diretor-geral de Coordenação Judiciária. Dois outros casos de vício aconteceram na gestão do servidor Ivan Freddi.
Carvalho nega ter conhecimento ou participação em qualquer irregularidade. Freddi disse ter sempre agido dentro da lei e do regimento interno do TRT-SP.
Diretor-geral por dez anos, estava entre as atribuições de Carvalho operar o computador portátil por meio do qual são distribuídos os processos cuja porta de entrada na Justiça do Trabalho é o próprio TRT. O procedimento investigativo destinado a apurar a eventual participação de juízes nas irregularidades foi encaminhado no mês passado ao procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, a quem cabe investigar magistrados, que têm direito a foro especial.
O que se pretende apurar é se há ou não vínculos entre juízes, fraudadores e possíveis interessados. E, em caso afirmativo, se houve algum tipo de contrapartida aos magistrados por conta de suas decisões. Até o momento, porém, o Ministério Público não levantou nenhum dado que comprove a participação de magistrados.
Em dois depoimentos colhidos pela Procuradoria, em julho e agosto de 2004, consta descrição da participação da juíza Maria Aparecida Pellegrina, que presidiu o TRT de 2002 a 2004, juntamente com Flávio Carvalho, num caso suspeito de irregularidade.
O depoente, cujo nome é mantido sob sigilo pelos procuradores que atuam no caso, afirmou que a distribuição de um mandado de segurança de interesse do Sport Club Corinthians, em prejuízo do jogador Marcelinho Carioca, foi "manual e direcionada", a pedido de Pellegrina e com a conivência de Carvalho. Mas ainda não há elementos que apontem se essa suposta combinação aconteceu.
No entanto, todos os trâmites burocráticos do processo que constam do depoimento foram confirmados pela Procuradoria ao analisar cópias dos autos -razão pela qual o caso motivou a instauração imediata de procedimento para investigar os juízes.
Procurada pela Folha, a servidora Heloísa Bernardi, que substituía Carvalho em suas férias e usava a senha funcional dele, disse se lembrar do mandado de segurança, mas não do momento exato de sua distribuição. Afirmou, no entanto, que existem casos nos quais juízes "sugerem" distribuição dirigida. "Sempre rola. [Os juízes] sugerem. Eles pedem tudo que querem", disse.

Manual
Um documento obtido pelo Ministério Público, com o título "Manual de Funcionamento do Sistema Notebook", orienta o usuário do computador portátil sobre como proceder quando a distribuição for manual. É possível, conforme o documento, excluir registros de distribuição, desde que isso seja feito no mesmo dia. Depois, o ato deixa pistas.
A apuração da Procuradoria sobre as fraudes começou com uma denúncia anônima. Foi encaminhada ao órgão por escrito e acompanhada pela lista de processos em cuja distribuição já havia a indicação prévia do juiz ou colegiado -as chamadas turmas- para os quais deveriam seguir. É o que juridicamente se chama distribuir por prevenção.
Torna-se prevento o juiz que, em algum momento, atuou em um processo. Depois disso, toda vez que esse processo voltar ao tribunal, a preferência para analisá-lo será daquele primeiro juiz que nele despachou. A fraude sob investigação produziu a distribuição de processos por prevenção para juízes e turmas que nunca haviam atuado antes na causa.
Dos 22 processos com distribuição irregular, quatro têm como parte interessada as Pedreiras Cantareira, que integra o grupo suíço Holcim, um dos líderes mundiais na produção de concreto. Em um dos processos da Cantareira, a sentença de primeira instância foi reformada pelo tribunal favoravelmente à empresa.
O voto que puxou a votação unânime no colegiado de magistrados foi do juiz Renato Mehanna Khamis, hoje aposentado por problemas de saúde.
O processo consta da lista recebida pelo Ministério Público. A etiqueta colada na capa indica Khamis como juiz sob prevenção para a causa. Mas não há elementos, segundo a investigação, para justificar essa distribuição.
Em outro caso relacionado à Cantareira, no qual o TRT manteve a decisão de primeira instância, a distribuição por prevenção consta de etiqueta colada na capa do processo, mas não da lista investigada. Para o Ministério Público, trata-se de um indício de que registros foram apagados do sistema informatizado do TRT, pois os dados organizados na lista têm se mostrado fidedignos. As exceções não invalidam a relação. Suscitam dúvidas sobre os procedimentos adotados para distribuir processos no tribunal.

Turmas e Gallo
Falta na lista a relação de processos que foram distribuídos, com indicação prévia, diretamente para turmas escolhidas. Essa modalidade de distribuição é prevista no regimento interno do TRT, que dá preferência de análise de um processo para a turma pela qual ele já tenha passado antes, em casos de o juiz que nele atuou ter mudado de turma.
Esse tipo de manipulação, com direcionamento para as turmas, aconteceu, segundo o Ministério Público, com a reclamação trabalhista que o empresário Rogério Gallo moveu contra empresas do grupo econômico Rede TV!.
A etiqueta na capa do processo de sete volumes indica como preventa a nona turma do TRT-SP. Nem mesmo os advogados de Gallo perceberam essa indicação.
Na ação proposta em 2001 na 2ª Vara do Trabalho de Barueri (SP), Gallo, ex-superintendente artístico da Rede TV!, disse que a empresa rescindira injustamente e antes do tempo seu contrato. Cobrou na Justiça o que afirmou ter sido pactuado: pagamento de aluguel, passagens, salários mensais de R$ 96,8 mil a vencer e suspensos pela rescisão, além de multas e danos morais por declarações de executivos da rede a seu respeito.
A sentença, de 16 de novembro do mesmo ano, concedeu praticamente tudo que Gallo reclamou. Em recurso ao TRT-SP, a decisão foi reformada em julgamento colegiado que seguiu o voto da juíza Sonia Maria Forster do Amaral. Ela era substituta e assumiu a relatoria em lugar de outro magistrado, que saíra em férias.
O julgamento da nona turma excluiu a condenação da Rede TV! por dano moral e boa parte das verbas trabalhistas. Segundo os advogados de Gallo, pela decisão de primeira instância a causa poderia chegar a R$ 10 milhões. Nos termos do que decidiu o TRT, ficou em cerca de R$ 2 milhões. A diferença está sendo discutida no Tribunal Superior do Trabalho.
Inicialmente, a causa foi distribuída à juíza Laura Rossi, que integra a nona turma e se declarou impedida. Ela disse à Folha, por meio de sua assessoria, ter tomado tal decisão diante dos rumores, à época, sobre irregularidades na distribuição do processo.
Pelo que a Procuradoria concluiu da análise inicial de 160 processos, não há um padrão de causas para as irregularidades. É possível que, conhecedores do entendimento de um juiz sobre tais questões, os fraudadores tenham remetido-lhe determinados processos. Daí a importância de apurar se há vínculos entre magistrados, fraudadores e beneficiários.
Também ainda não se definiu um perfil de beneficiário. A Procuradoria trabalha com duas hipóteses: ganhos de eventuais beneficiários em quantidades de causas, bem como de interesses voltados para um único processo.


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