São Paulo, Sábado, 17 de Julho de 1999
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ARTIGO
Montoro, um jovem

PAULO RENATO SOUZA
especial para a Folha

Não lembro exatamente o dia, mas foi uma quarta-feira, lá por 20 de maio de 1984. Tendo assumido a presidência da Prodesp havia dois meses e pouco, estava iniciando uma das reuniões semanais com os gerentes da companhia, quando recebi uma chamada do Andrezinho para que fosse ao Palácio, a pedido do governador. Quarta-feira era também o dia das reuniões semanais das Câmaras de governo presididas pelo governador Montoro. Era precisamente o dia da Câmara Social, que incluía os secretários da área, mais o de Governo, do Planejamento e da Fazenda.
A imprensa daqueles dias falava em reforma do secretariado detonada pela demissão do secretário da Educação, Paulo de Tarso Santos, dois dias antes. Tão pronto cheguei, o governador pediu para sentar-me a seu lado na cabeceira da mesa e segredou-me: "Preste atenção na reunião, pois vou nomeá-lo secretário da Educação".
O chão fugiu-me debaixo da cadeira. Tinha que ser engano. Provavelmente ele teria querido dizer Administração ou outra coisa semelhante. "Educação, dr. André?", perguntei surpreso. "É sim", foi sua única resposta, e a reunião prosseguiu sem que eu pudesse prestar atenção em uma só palavra que estava sendo dita ali.
Quando a notícia veio a público a surpresa foi geral e vários amigos consideraram o gesto de Montoro uma "temeridade", como vim a saber muito depois. Tinha eu 38 anos, e era um novato em São Paulo, vivendo em Campinas havia apenas cinco anos.
Talvez não fosse uma temeridade, mas foi um gesto de uma coragem e audácia que nunca cansei de mencionar com extrema admiração. Admiração maior ainda porque eu fui um de tantos jovens em quem Montoro apostou e que tiveram e estão tendo presença na vida nacional. José Serra, João Sayad, Clóvis Carvalho, Luís Carlos Bresser Pereira, José Carlos Dias, para citar alguns. Não conheço outra pessoa que tenha promovido uma renovação tão grande nos quadros políticos e gerenciais do nosso país.
O dia-a-dia de trabalho com o dr. André fez minha admiração crescer sem cessar. Seu compromisso com a democracia e com a ética iam ao âmago do seu ser e estavam presentes nos menores atos e gestos de governo.
Quando as críticas e avaliações de opinião pública assinalavam problemas de afirmação para o governo, para muitos de nós ficava a certeza de que o governo Montoro estava 50 anos à frente de seu tempo, no trato sério da coisa pública e no respeito aos processos democráticos de participação e decisão. Sem dúvida aqueles quatro anos foram um marco importante do processo civilizatório na política nacional.
A contribuição de Montoro para o desenvolvimento de nosso país durante a sua extensíssima e completa vida pública, que abarcou desde a vereança até o governo do Estado, passando pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, é imensa em termos de leis de sua autoria (a do 13º salário, por exemplo) e de atos e iniciativas importantes como a hidrovia do Tietê ou o tombamento da serra do Mar.
Esses legados por si só nos permitem considerar Montoro como uma das figuras públicas mais importantes dos nosso país nos últimos 50 anos. Sem dúvida, porém, sua contribuição mais importante para a democracia em nosso país foi a liderança que exerceu no processo de luta pelas eleições diretas para a Presidência da República.
Em contrapartida, também não houve outra pessoa que tivesse dado contribuição individual mais decisiva para a redemocratização no nosso país.
Novamente as marcas de um jovem em ação: coragem e audácia, às quais vieram a somar-se uma visão histórica e estratégica precisa e uma determinação inabalável, própria de um bandeirante. A história é conhecida e, se hoje estamos consolidando um processo democrático no nosso Brasil, é importante não deixar de reconhecer que na convocatória do comício da praça da Sé nasceu a liberdade de que hoje desfrutamos.
Uma derrota para o Senado não abalou nosso jovem Montoro. Havia fundado o PSDB e quatro anos depois ajudou a consolidação do partido, concorrendo, com a humildade dos grandes, a uma cadeira na Câmara e elegendo com sua votação uma forte bancada por São Paulo. Foi um exemplo de militância política de dar inveja a qualquer jovem idealista.
Retomou no Congresso a bandeira da reforma política, com ênfase na introdução do parlamentarismo e do voto distrital misto, com tanta garra e entusiasmo que remoçou fisicamente a olhos vistos. Olhava para longe e para o alto, distanciando-se das discussões mesquinhas das reformas ministeriais ou das brigas partidárias por mais ou menos espaço político. Jamais recusou, entretanto, convite para participar de qualquer reunião de diretório ou seminário para o fortalecimento do seu PSDB.
Dr. André teve um infarto extenso na porta de um avião que o levaria ao México. Participaria em uma conferência, onde faria um discurso contra os excessos do capitalismo selvagem de nossos dias, como disse ao presidente Fernando Henrique, por telefone, na manhã desse mesmo dia. Na verdade, além disso, iria articular uma candidatura à presidência do Parlatino, que renovasse a instituição dentro da perspectiva latino-americanista que sempre defendeu, como me confidenciou seu filho Ricardo, numa sala do Incor, já após a sua morte.
Dr. André morreu muito jovem aos 83 anos. Olhando para a frente e para o alto. Por isso era tão querido e admirado pela juventude de seu partido.


Paulo Renato Souza, 53, é economista e ministro da Educação. Foi secretário da Educação e reitor da Unicamp no governo Montoro. Foi candidato a suplente de senador com Franco Montoro nas eleições de 1990


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