São Paulo, sexta-feira, 17 de setembro de 2004

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JANIO DE FREITAS

Liberdade original

Já ninguém pode dizer que inexiste um traço de originalidade a distinguir o governo Lula de seu antecessor. Por ora é um só e, mesmo que o governo continue tentando ampliá-lo e fazê-lo mais conseqüente, é muito improvável que o consiga. A originalidade está na concepção que o governo tem, e a cada dia demonstra mais, do que é e do que deveria ser o papel dos meios de comunicação.
No congresso da Associação Nacional de Jornais, entidade que congrega o patronato da imprensa diária, Lula fez afirmações tão enfáticas a favor da liberdade de imprensa que até ultrapassou o limite dos fatos: "Ao vir aqui, reitero este compromisso [com a liberdade de imprensa], que é o compromisso de uma vida inteira". De muitas vidas inteiras, mas não constam participações de Lula nos embates por tal face das liberdades democráticas.
O discurso de Lula foi muito bem recebido pelos associados da ANJ, mas cabe uma pergunta: que outra coisa, senão o apoio à liberdade de imprensa, diria um presidente da República em reunião solene dos donos de jornal? As práticas do governo, porém, não sustentam o discurso gentilmente óbvio.
A falácia de que o projeto do Conselho Federal de Jornalismo, com sua pretensão de "orientar a atividade do jornalismo", só foi mandado ao Congresso porque pedido pela Federação Nacional dos Jornalistas não precisaria de mais desmentidos. Apesar disso, o próprio governo proporcionou mais um, menos de 24 horas do discurso de Lula na ANJ. Muito mais importantes do que a Federação dos Jornalistas, todas as federações dos industriais e dos comerciantes têm reivindicado a redução dos juros, como preliminar para a adoção de políticas de crescimento econômico. Discurso na terça, aumento dos juros na quarta.
Não é preciso lembrar a idéia de proibir funcionários públicos de proporcionar informações a repórteres, nem outras idéias e referências da mesma família, prodigalizadas por várias das figuras centrais do governo. Bastará ficar na mesma terça-feira do discurso. Horas antes da fala de Lula, o secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência, Ricardo Kotscho, publicou na Folha um artigo com significação muito especial.
Tratou-se de uma intervenção na divergência entre dois colunistas do jornal, a propósito de assunto irrisório e sem conotação com o governo, para produzir um julgamento segundo a ótica tipicamente governista e decretar de que lado está a razão. Tenho mais anos de jornal do que deveria ter de vida, mas nunca vi na imprensa brasileira, nem tive conhecimento na imprensa estrangeira, de atitude semelhante. Sob o sotaque vocabular de gesto autorizado pela intimidade, é um ato arbitrário, com a chancela do poder que lhe é dada pela função do autor e com os ingredientes do governismo exacerbado. Dois traços que repelem qualquer sentido jornalístico na atitude e no teor do texto enviado à Folha por Kotscho, jornalista unanimemente respeitável enquanto exerceu o jornalismo profissional.
A mesma Secretaria de Comunicação da Presidência, da qual é incumbido o ministro Luiz Gushiken, precisou emitir, anteontem, uma nota oficial incomum: pedido de desculpas a outro ministro e a quem acesse o "site" do governo. Na Secom foram forjadas, e atribuídas a Gilberto Gil, frases gravemente insultuosas à imprensa, chamada em geral de fascista. O "grave erro de edição" (erro de edição?) foi de uma assessora-jornalista (jornalista?) responsável (não seria irresponsável?) pela página na internet. Pode-se dar como certo que tenha sido ato individual. As circunstâncias concorrem, no entanto, para a suspeita de que, como é tão comum, o ato individual exprima um ambiente conceitual, ainda que o faça com exagero de percepção e, daí, de formulação.
Os indícios de que a liberdade de imprensa não agrada o governo são sucessivos.


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