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NO PLANALTO
Retrato da família (política) de Fernando Henrique 2º
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A o pintar o "Retrato da Família de Carlos IV", Goya,
dono de técnicas superiores no
domínio das artes plásticas, recorreu a um artifício que fez jus à
sua genialidade. No quadro, acomodou os membros da família
real diante de um hipotético espelho, que os estaria refletindo.
Como espelho não é dado a
mentiras, o artista viu-se, por assim dizer, livre para retratar os
modelos em toda a sua mediocridade. Fez uma pintura em que a
beleza está na feiúra. Goya ainda
recorreria a um segundo álibi: incluiu-se a si próprio no impiedoso
retrato oficial.
Na semana passada, como que
inspirado no gênio espanhol,
FHC produziu um fantástico retrato da grande "família política"
que enlaça a sua administração
desde o primeiro reinado. Trata-se de uma obra-prima.
Postados defronte do espelho
que reflete o combate raso do dia-a-dia do Congresso, os personagens do quadro do monarca revelaram-se ainda mais caricatos do
que aqueles levados à tela por Goya. É gente miúda, que se olha de
esguelha e faz cara feia, como se a
amargura lhes consumisse as entranhas.
Talento como o de Goya, sabe-se à saciedade, é dom outorgado a
poucos. Talvez por isso FHC tenha tentado superá-lo em astúcia. Embora manejasse, ele próprio, os pincéis, o monarca, proclamando uma neutralidade que
sabe impossível, assinou a pintura com a mão do PMDB.
No reflexo do espelho, implacável como ele só, a imagem amazônica de Jader Barbalho inspira
suspeitas. Jader tentou fazer melhor figura. Chegou a contratar
uma empresa para auditar o próprio patrimônio.
Com os números na mão, posaria mais à vontade. Depois de
pronta, porém, a perícia patrimonial foi levada à gaveta. E sua representação no retrato ganhou
um quê de Quércia.
Ao lado de Jader, mãos dadas
com o infante Aécio Neves, está
Geddel Vieira Lima. É uma espécie de anão Pertusato que, assim
como em "As Meninas", de Velásquez, outro marco da história da
arte, é retratado com o pé acomodado no dorso de um cão deitado.
O animal de "As Meninas" suporta impassível o toque do sapato do anão. O do retrato da família política do monarca, apelidado pelos circunstantes de ACM,
traz o cenho crispado, as presas à
mostra. Fechado em seus rancores, está em posição de ataque.
Dado equivocadamente como
"cachorro morto", mostra-se
pronto a reagir a eventuais chutes
oportunistas. Em meio a pequenos homens, foi representado
maior do que de fato é.
Ao fundo, afiando os floretes,
Tasso Jereissati e José Serra dividem-se entre a contemplação do
horizonte futuro e a disputa pela
atenção do monarca. Portam-se
como inimigos encarniçados, à
espera da batalha sanguinolenta.
Mais ao fundo, há uma malta de
pobres-diabos com seus rostos indistinguíveis.
Alguns, barriga colada num
balcão em que estão expostos verbas e cargos, trazem a mão no
bolso. Outros, do lado oposto, trazem a mão estendida. Compõem
uma atmosfera de Secos & Molhados em que se dá e se recebe.
O monarca, a exemplo de Goya
e Velásquez, cuidou de injetar a
própria imagem em seu quadro.
Ele traz aquela cara típica das
pessoas que caem em si. Uma cara de alguém que, mesmo julgando-se superior, mesmo imaginando-se diferente, mesmo sabendo-se conhecedor dos livros, do mundo e da alma humana, reconhece-se com os pés fincados num pântano de constrangedoras ambiguidades.
Ao observar o quadro pintado
na Brasília dos últimos dias, a sociedade é tomada de pânico. O espectador não sabe se aquilo que
vê é apenas mais um retrato de
um grupo de culpados fingindo
inocência ou um imenso reflexo
de si mesmo no espelho.
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