São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2001

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NO PLANALTO

Retrato da família (política) de Fernando Henrique 2º

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A o pintar o "Retrato da Família de Carlos IV", Goya, dono de técnicas superiores no domínio das artes plásticas, recorreu a um artifício que fez jus à sua genialidade. No quadro, acomodou os membros da família real diante de um hipotético espelho, que os estaria refletindo.
Como espelho não é dado a mentiras, o artista viu-se, por assim dizer, livre para retratar os modelos em toda a sua mediocridade. Fez uma pintura em que a beleza está na feiúra. Goya ainda recorreria a um segundo álibi: incluiu-se a si próprio no impiedoso retrato oficial.
Na semana passada, como que inspirado no gênio espanhol, FHC produziu um fantástico retrato da grande "família política" que enlaça a sua administração desde o primeiro reinado. Trata-se de uma obra-prima.
Postados defronte do espelho que reflete o combate raso do dia-a-dia do Congresso, os personagens do quadro do monarca revelaram-se ainda mais caricatos do que aqueles levados à tela por Goya. É gente miúda, que se olha de esguelha e faz cara feia, como se a amargura lhes consumisse as entranhas.
Talento como o de Goya, sabe-se à saciedade, é dom outorgado a poucos. Talvez por isso FHC tenha tentado superá-lo em astúcia. Embora manejasse, ele próprio, os pincéis, o monarca, proclamando uma neutralidade que sabe impossível, assinou a pintura com a mão do PMDB.
No reflexo do espelho, implacável como ele só, a imagem amazônica de Jader Barbalho inspira suspeitas. Jader tentou fazer melhor figura. Chegou a contratar uma empresa para auditar o próprio patrimônio.
Com os números na mão, posaria mais à vontade. Depois de pronta, porém, a perícia patrimonial foi levada à gaveta. E sua representação no retrato ganhou um quê de Quércia.
Ao lado de Jader, mãos dadas com o infante Aécio Neves, está Geddel Vieira Lima. É uma espécie de anão Pertusato que, assim como em "As Meninas", de Velásquez, outro marco da história da arte, é retratado com o pé acomodado no dorso de um cão deitado.
O animal de "As Meninas" suporta impassível o toque do sapato do anão. O do retrato da família política do monarca, apelidado pelos circunstantes de ACM, traz o cenho crispado, as presas à mostra. Fechado em seus rancores, está em posição de ataque. Dado equivocadamente como "cachorro morto", mostra-se pronto a reagir a eventuais chutes oportunistas. Em meio a pequenos homens, foi representado maior do que de fato é.
Ao fundo, afiando os floretes, Tasso Jereissati e José Serra dividem-se entre a contemplação do horizonte futuro e a disputa pela atenção do monarca. Portam-se como inimigos encarniçados, à espera da batalha sanguinolenta. Mais ao fundo, há uma malta de pobres-diabos com seus rostos indistinguíveis.
Alguns, barriga colada num balcão em que estão expostos verbas e cargos, trazem a mão no bolso. Outros, do lado oposto, trazem a mão estendida. Compõem uma atmosfera de Secos & Molhados em que se dá e se recebe.
O monarca, a exemplo de Goya e Velásquez, cuidou de injetar a própria imagem em seu quadro. Ele traz aquela cara típica das pessoas que caem em si. Uma cara de alguém que, mesmo julgando-se superior, mesmo imaginando-se diferente, mesmo sabendo-se conhecedor dos livros, do mundo e da alma humana, reconhece-se com os pés fincados num pântano de constrangedoras ambiguidades.
Ao observar o quadro pintado na Brasília dos últimos dias, a sociedade é tomada de pânico. O espectador não sabe se aquilo que vê é apenas mais um retrato de um grupo de culpados fingindo inocência ou um imenso reflexo de si mesmo no espelho.


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