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LANTERNA NA POPA
A sociedade civil
ROBERTO CAMPOS
Se há um termo que tem sido
estropiado por usos e abusos é
"sociedade civil". Antes de servir de bandeira para rebeldia
da turma do "si hay gobierno,
soy contra", ele teve uma história curiosa. Muita gente o associa, por via de Marx, a Hegel.
Mas quem primeiro falou nisso
foi um inglês chamado Adam
Ferguson, em 1767, no seu "Ensaio Sobre a História da Sociedade Civil". Não é uma peça
moderna. No estilo moralístico
da época, discorre sobre as virtudes do homem em sociedade.
A sociedade civil, tal como ele a
entende, é o oposto do indivíduo
isolado, este mais ou menos como os animais brutos. Naqueles
saudosos tempos em que ainda
não se falava em etologia animal, sociologia, antropologia e
muito menos em psicanálise,
era assim que parecia: "Ele (o
homem) goza a sua felicidade
dentro de certas e determinadas
condições, e tanto como um indivíduo isolado ou como membro da sociedade civil deve seguir um curso específico para
colher as vantagens da sua natureza". De certo modo, sociedade civil era a condição do homem da cidade, que está na origem da palavra "cidadão". Inocente Ferguson!
Foi Hegel quem inventou um
outro sentido que se prestou a
fácil desvirtuamento. A monarquia prussiana, da qual era súdito apreciado, se sentia (como
todas as monarquias absolutas)
justificada por si mesma, de modo que o governo aparecia, por
assim dizer, como algo paralelo
à sociedade "civil", e, de certo
modo, dela independente, uma
vez que não tirava dela a sua legitimação. Mas, naturalmente,
há tantos Hegels quanto cabeças que o interpretem. Um marxista francês muito famoso há
três décadas, hoje meio esquecido, L. Althusser, em "Por Marx"
(1962), chega à beira da caricatura, construindo como idéia
hegeliana, em cada sociedade,
duas sociedades embutidas: a
das "necessidades" (ou da economia), que seria a sociedade
civil, e a "sociedade política",
ou o Estado, com tudo o que este
compreendia: religião, filosofia,
ideologia, em suma, a consciência que cada época tem de si
mesma. Ou seja, vida material,
de um lado, e espiritual, de outro. Só que, no pensar de Hegel,
a primeira dessas sociedades seria um "truque da Razão", e a
segunda delas é que constituiria
a condição de possibilidade daquela. Marx, é claro, como todo
o mundo sabe, achou que podia
inverter a equação e fazer do lado material das coisas a essência do lado político-ideológico.
Hoje, estamos cansados desses
exercícios e não achamos que as
suas obscuridades e confusões
justifiquem as pessoas se matarem umas às outras (exceto, é
claro, para os que sentem grande apetite de poder). O caminho
começa com generalidades e absolutos e termina no gulag e no
"paredón", da mesma forma
que séculos atrás terminava em
fortuna e fogueiras. Foi uma
longa andança da humanidade
até as idéias democráticas modernas, que surgem com a autonomia do indivíduo diante da
Coroa e com os primeiros pensadores liberais do Século 17, que
na Inglaterra inverteram essa
maneira de ver.
Hoje, a expressão "sociedade
civil" começou a servir a grupos
e a finalidades em relação aos
quais manter alguma desconfiança é prudência cautelar. Diversas variedades de esquerdas
e adjacências passaram a usar a
expressão para subentender
uma separação intratável entre
o "governo" e aquilo que chamam de "sociedade civil" - e,
portanto, para contrabandear a
noção, que fica implícita, mas
sempre presente, da ilegitimidade básica de todas as autoridades e leis que não sejam as deles
mesmos. Mas, parodiando o
Evangelho, muitos são os chamados e poucos os escolhidos.
Liberais americanos, por exemplo, vêm usando o termo no sentido de civilidade, tolerância -
boas maneiras, em suma, politicamente corretas...
Obviamente, uma sociedade
"civilizada" (no sentido de nossos valores ocidentais) pressupõe "civilidade", isto é, a aceitação de regras de convívio que
acolham a grande maioria das
pessoas. E também tolerância,
isto é, o reconhecimento de que
as pessoas são diferentes e devem ter o direito de sê-lo, enquanto não se metam a perturbar a vida alheia. A linha que
separa o lícito é quase sempre
tênue e muitas vezes difícil de
perceber com nitidez. Já li, certa
vez, na Europa, um cidadão de
maneiras muito polidas justificando a pedofilia, em nome, se
bem me lembro, do amor. E, de
vez em quando, na "defesa dos
direitos dos animais", alguns
amigos das bestas chegam ao
extremo de colocar bombas ou
ameaçar de morte os pesquisadores de laboratórios que manipulam ratos em macacos.
"Direitos humanos" é uma bonita expressão. Mas, por trás dela, há de tudo, começando por
vocações autoritárias, exibicionistas, malandros, carreiristas e
toda a fauna dos deslumbrados,
até a variedade doméstica comum dos bobos. Sem dúvida, há
um espaço válido para entidades humanitárias internacionais, como a Cruz Vermelha ou
o Crescente Vermelho Islâmico.
E para inumeráveis associações
não-lucrativas, culturais, educacionais e por aí afora. Mas será que isso cobre as ONGs que
querem disputar um papel de
comando na nossa governança,
a ponto de FHC ter criado o neologismo das organizações "neo-estatais"? Menos de 15% das
ONGs registradas no Conselho
Econômico e Social da ONU
(Organização das Nações Unidas) provêm de países em desenvolvimento (que já representam
uns 4/5 da população da Terra).
Ou seja, os Greenpeace da vida
que vêm meter o bedelho em
nosso país promovendo ações
contra a soja transgênica (um
assunto exclusivamente nosso)
estão representados em excesso,
no mundo, na proporção de
mais de 30 para 1! Viva a nossa
Constituição de 88...
Em outras partes, está se começando a debater mais seriamente até que ponto deixar ir a
pretensão dessas "organizações
informais" - cuja única legitimidade é dada pela sua exclusiva autolegitimação, como quem
diz: eu tenho o direito de me
meter na sua vida. No Brasil, os
resíduos do subdesenvolvimento político ainda intoxicam.
Tem gente achando que essa
história de ONG parece até extragaláctica. Mais uns 10 ou 20
anos e provavelmente o nosso
Congresso já estará debatendo o
excesso de intromissões da turma, por meio de uma CPI das
ONGs.
O surto de organizações intermediárias entre o governo e o cidadão, por iniciativa associativa destes, foi saudado por Tocqueville no século passado como
um dos "building blocks" fundamentais da democracia americana. A iniciativa da cidadania de um lado aliviava as tarefas do governo e de outro diminuía o centralismo burocrático,
às vezes despótico, dos modelos
europeus de governo.
As ONGs têm uma função útil
a desempenhar na medida em
que desenvolvam o aspecto associativo e mobilizem os cidadãos para substituírem os governos, que têm um excedente
de tarefas e um déficit de recursos e de capacidade gerencial.
Mas para isso são necessárias
duas condições. Primeiro, que
as ONGs não sejam meras caçadoras de verbas públicas. Segundo, que não se intoxiquem
com fanatismos setoriais, coisa
que vem acontecendo com frequência nos movimentos ambientalistas, que entronizam a
tal ponto as plantas e animais
que o homem passa a ser um detalhe incômodo. Viés paralelo se
encontra em algumas ONGs de
defesa dos direitos humanos,
que morrem de pena das 3.000
vítimas de Pinochet e silenciam
sepulcralmente sobre os milhares de fuzilados e 2 milhões de
exilados da ditadura de Fidel
Castro.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal
pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna
na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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