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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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JANIO DE FREITAS

O bolso e a vida

A primeira abordagem reformista do governo de Luiz Inácio Lula da Silva mexe com o bolso e a vida da maioria da população -assalariados, aposentados, pensionistas e funcionalismo-, razão bastante para fazê-la problemática. Mas direitos adquiridos, expectativa de direitos, privilégios e restrições constitucionais são motivos apenas aparentes para a discussão que inicia o governo Lula, como o foram para que o governo Fernando Henrique abandonasse o propósito de reforma da Previdência.
Perdeu-se no Brasil a noção de serviço público e se esvaziou a noção de Estado, cujas finalidades ainda aceitas aparecem misturadas com a idéia de governo. A corrosão do conceito de serviço público é um fruto plantado já no primeiro governo militar, na represália aos servidores que, eles e não o serviço público, foram parte relevante na fermentação anterior ao golpe.
Desde então, a imprensa dissemina hostilidade ao servidor e, no rescaldo, desprezo ao serviço público em si. Servidor passou a ser, por definição, privilegiado, marajá, vadio, não importando a proporção entre vencimentos e área de atuação, responsabilidades, capacitação exigida ou lá o que seja. As aberrações são usadas como generalizações, e pronto. (Uma curiosidade para o leitor desavisado: em jornais e TVs de São Paulo e Rio, a grande maioria dos jornalistas nos níveis que produzem essas induções na opinião pública têm salário superior ao vencimento de qualquer cargo público, e benefícios que, entre os servidores, seriam próprios dos marajás de fato).
Todos podem abrir mão de direitos, e todos já o fizemos de algum modo, o que leva à probabilidade de que o façamos de novo. Mas depende dos direitos em questão e do que será feito deles ou com eles. A respeito da Previdência, seja a dos funcionários ou a dos assalariados, nem ao menos se sabe com absoluta segurança qual é sua verdadeira situação. Como, então, seria possível estabelecer o que precisa ser aplicado a salários, vencimentos, aposentadorias e pensões para sanar a Previdência?
O primeiro passo sério só pode ser o levantamento convincente, inquestionável mesmo, da situação. Só a partir daí será possível formular projetos menos movidos por teses de moda, e buscar menos injustiça entre as diferentes fontes de contribuição, como em relação aos seus respectivos, vá lá que sejam, benefícios.
Mas uma reforma séria da Previdência não se fará sem alguma noção do que é serviço público e do Estado e seu papel. A iniciativa privada não faz um país, no sentido de vida social e econômica organizada. Só o serviço público pode fazê-lo. Os estudos sobre a recuperação da Europa, da devastação de pós-guerra ao bem-estar de hoje, sem igual no mundo, demonstram que o êxito não se explica pelo Plano Marshall, mas pelo papel decisivo do serviço público e pela função atribuída ao Estado naqueles novos ou restaurados regimes democráticos.
Nos países adiantados compreende-se que a Previdência pública não se autofinancia. Seus déficits são de responsabilidade do Estado, cujo poder de arrecadação destina-se a prover os fatores todos de bem-estar social.
Sejam a segurança, o transporte, o urbanismo, a aposentadoria, a assistência médica.
Por isso, em alguns países onde o déficit da Previdência alcançou dimensão perturbador, por exemplo Espanha e Itália, foi tratado com uso dos amplos meios de arrecadação do Estado. Nos dois países citados, aliás, a Previdência constitui o maior gasto relativo no Orçamento, sem falarmos em Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia e outros paraísos feitos pela compreensão dos impostos, sobretudo o de renda, como fatores de justiça social. Ou seja, também previdenciária para civis e militares, funcionários e assalariados, desempregados e aposentados.


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