São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE
Bate-boca serve a exercício pedagógico

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

O bate-boca entre os presidentes do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, apesar de ser péssimo exemplo de educação cívica e de criar tensões institucionais desnecessárias por motivos mesquinhos, pode motivar exercícios de algum valor pedagógico.
Por exemplo, de história recente do Brasil. O senador Antonio Carlos Magalhães acusa o ministro Carlos Velloso de ter ingressado na magistratura por nomeação durante o regime militar, não por meio de concurso público.
De fato, a biografia oficial de Velloso registra que, em março de 1967, ele foi nomeado juiz federal em Minas Gerais, empossando-se no cargo em abril do mesmo ano.
Mas, também em 1967, sob o mesmo regime militar, Magalhães, segundo sua biografia oficial, foi nomeado e empossado prefeito da cidade de Salvador.
Os dois adversários de agora, no entanto, começaram suas respectivas carreiras na justiça e na política por meios mais democráticos.
Magalhães se elegeu deputado estadual na Bahia em 1954 e deputado federal em 1958 e 1962 (pela UDN) e 1966 (pela Arena, o partido de sustentação do regime militar). A maioria dos parlamentares da UDN foi para a Arena quando o sistema bipartidário foi imposto em 1965. Mas 10% foram para o MDB, de oposição aos militares.
Velloso prestou concursos públicos em 1964 (o ano do movimento militar que depôs o presidente João Goulart) e em 1966. No primeiro, chegou ao cargo de promotor de justiça de Minas Gerais; no segundo, ao de juiz seccional.
Outra acusação de ACM contra Velloso é que o ministro foi nomeado para o STF durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello. É verdade. Sua nomeação ocorreu em 28 de maio de 1990 e foi assinada por Collor.
Mas é curioso lembrar que, como governador da Bahia e comandante informal da bancada baiana no Congresso, ACM foi um dos raros líderes nacionais de expressão a dar sustentação política a Collor até o fim de sua passagem pelo Planalto. Seu filho, deputado Luís Eduardo Magalhães, votou contra o impeachment do presidente da República na Câmara.
Outra análise acadêmica que essa polêmica sugere é na área da semântica: como as palavras, até os fatos, mudam de sentido conforme o desejo de quem os manipula.
Assim, neste caso, inserção no regime militar e no esquema Collor serve para desqualificar o outro, mas não quem o acusa.
George Orwell foi, talvez, quem tratou melhor, na cultura popular, dessas inversões de sentido na política. Em "1984", ele mostra como agentes do partido dominante na fictícia Oceania constantemente reescrevem a história e a língua para tornar aliados de ontem em inimigos de hoje e vice-versa.
Da linguística, pode-se chegar à ética e até a filosofia com a desavença entre ACM e Velloso. Ela serve como um bom estudo de caso sobre o cinismo, não no sentido da escola filosófica de Diógenes (o da lanterna), mas no que lhe foi dado depois do helenismo, de desfaçatez ao lidar com a realidade.


Texto Anterior: Ministro recusa discussão e espera posição de FHC
Próximo Texto: "Hackers" invadem sites dos Três Poderes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.