São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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LANTERNA NA POPA
Repensando velhos temas...

ROBERTO CAMPOS

A julgar do discurso eleitoral da coligação PT-PDT, as "esquerdas" brasileiras continuam politicamente populistas-corporativistas, embrulhadas em conceitos, ou antes preconceitos, que pouco mudaram desde os tempos de João Goulart. Deve-se dar-lhes, é claro, o desconto de praxe, como a todos os participantes. Afinal de contas, o jogo do poder consiste em tentar tirar quem está lá em cima e ocupar o lugar. Nada tem a ver com a desinteressada busca da verdade, por mais que os disputantes encham o peito e se apresentem em nome do povo, da pátria, dos jovens, dos velhos, dos homens, das mulheres, dos indecisos entre as duas alternativas, de tudo, enfim, quanto possa, mesmo de longe, cheirar a voto.
Em outras partes do mundo, porém, observa-se hoje um surto de reflexão crítica sobre questões tais como a estabilidade do sistema financeiro internacional e a flexibilização ou não do entendimento econômico ortodoxo conhecido por "Consenso de Washington".
Também as esquerdas, voltando a si da tontura do desmoronamento do sistema soviético, estão começando a repensar temas teóricos e práticos. Há alguns trabalhos sérios, que procuravam rediscutir a questão da possibilidade teórica do cálculo econômico numa economia socialista.
Como a velha guarda se lembra (não creio que os economistas mais jovens se comovam com o assunto), houve uma acirradíssima discussão, dos anos 20 aos anos 40, quando Von Mises e, depois, Hayek mostraram a inanidade do planejamento central, pois não haveria como resolver a quantidade astronômica de equações para encontrar os preços relativos de equilíbrio, isto é, aqueles níveis de preços que permitissem que nem faltasse o que o consumidor queria nem sobrassem capacidade ou recursos involuntariamente não utilizados. O modelo do equilíbrio do mercado de Walras foi geralmente usado por todos. E, pouco depois do começo do século, Barone e Pareto pretenderam mostrar que, teoricamente, uma economia socialista poderia ter eficiência equivalente a uma economia de mercado. Depois da queda do muro de Berlim em 1989, o planejamento socialista saiu de moda, e a discussão se tornou bizantina.
Alguns socialistas contemporâneos bem equipados matematicamente resolveram, no entanto, voltar ao assunto, tentando provar que, com o poder dos computadores modernos, desaparece a impossibilidade do planejamento central. Mas, para isso, ajuntam algumas complicações para levar em conta as preferências dos consumidores -aquilo que, nas economias de mercado competitivas, é muito facilmente resolvido pelo sistema de preços. Equações complicadas para substituir o faro dos vendeiros.
Há, em todas essas questões, múltiplas facetas. Mas duas, em especial, merecem reflexão. A primeira, antiga e universal, que vai aos fundamentos culturais, éticos e religiosos dos homens, é a da distribuição dos dons e bens deste mundo. A outra é a pergunta sobre como produzir os bens que as pessoas desejam. Até a revolução industrial, lá pelos fins do século 18, a vida era dura e curta e a escassez, a mais evidente das condições da existência humana. Quase toda a gente medianamente sensata concordava que, embora fosse muito desejável um mundo justo e perfeito, isso era utópico. O máximo com que se poderia sonhar limitava-se, na melhor das hipóteses, a uma governança mais virtuosa e competente, no sentido do bom chefe de família.
Com os prodígios da indústria, da agricultura, dos transportes, da tecnologia e a explosão do conhecimento (no mesmo ano de 1665 apareceram as duas primeiras revistas científicas de que se tem conhecimento, uma na França, outra na Inglaterra; hoje, são 50 mil e quase mil títulos de livros são publicados, atualmente, por dia, em todo o mundo) começou a subir à cabeça dos homens a embriaguez da onipotência, de que tudo seria possível, e que a era da abundância interminável principiava logo adiante. Um especialista, Wurman, observou que uma edição diária do "The New York Times" contém mais informação do que, na Inglaterra do século 17, uma pessoa média provavelmente encontraria ao longo de toda a sua vida.
O primeiro "projeto" de "socialismo científico" (ainda que, para Marx, utópico) partiu de um descendente imediato dos enciclopedistas do século 18, o conde de Saint-Simon, que anteviu problemas tão atuais que ainda agora Pierre Musso considera a "matriz saint-simoneana" uma precursora da "sociedade da informação". Para reduzir a coisa a uma pílula, o aristocrático "socialista" imaginava um mundo como um grande projeto de engenharia.
Quando o vice-presidente norte-americano Al Gore fala em "governo eletrônico", e as grandes potências industriais se jogam de cabeça na construção das "auto-estradas da informação", vê-se que há por aí uma rede de idéias que se cruzam em todos os sentidos.
Em janeiro deste ano ninguém menos do que J. Stiglitz, vice-presidente e economista-chefe do Banco Mundial, a quem se deve ter aberto o novo campo teórico da economia da informação, provocou uma vasta onda com a sua conferência na Universidade das Nações Unidas, em Helsinque, intitulada "Mais instrumentos e maiores objetivos: caminhando para um pós-Consenso de Washington". Sua tese é que alguns dos elementos do consenso, por exemplo, baixa inflação e déficits orçamentários reduzidos, embora possam ter sido úteis no quadro das crises econômicas latino-americanas dos anos 80, não são suficientes para garantir crescimento a longo termo e nem mesmo estabilidade macroeconômica, em circunstâncias diferentes.
A crítica das idéias de Stiglitz fica para outro artigo. Voltemos ao dilema das esquerdas. Solidariedade, bondade, caridade são valores morais, não operacionais. A idéia de que é possível realizá-las automaticamente, por meio de uma engenharia econômica e política, parte do suposto (que Marx, embora com dúvidas, assumiu) de que já chegamos tecnologicamente ao fim da era da escassez. Como, infelizmente, isso não corresponde aos fatos, persiste sempre a mesma insolúvel dificuldade de como dividir bens escassos num mundo potencialmente insaciável, em que somente poucos mostram vocação para o voto de pobreza. Enquanto isso, os menos desenvolvidos, que já somam 80% da população mundial, como se a pobreza fosse pouca, contribuem com mais 200 mil crianças por dia, 95% do aumento da população mundial. Mais uns 160 milhões até o ano 2000. Do tempo de Cristo até a descoberta do Brasil, a taxa de crescimento anual foi de 0,6 por mil. Hoje, é mais de 25 vezes maior, e chega a 50 ou 60 vezes em alguns dos países mais carentes.
Infelizmente, o problema da pobreza não pode ser resolvido apenas com "vontade política". Exige aumento de produtividade do setor privado e eficácia operacional do setor público. E esta só é possível quando os governos deixam de fazer o que não sabem e se concentram no que importa.


Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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