São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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OS CANDIDATOS
Na 3ª disputa consecutiva à Presidência, Lula adota discurso mais pragmático do que nas outras eleições
Petista, mais pragmático, tenta de novo a Presidência


"Candidato natural" das esquerdas tem discurso pronto e decorado para as questões que, desde já, sabe que vão surgir durante esta campanha


do Conselho Editorial

Em 1979, Lula foi convidado pela revista "Manchete" para um jantar na boate "Gallery", então o "point" em São Paulo para aqueles que as colunas sociais chamam de ricos e descolados.
Lula estava apenas iniciando o trânsito do papel de líder sindical, que conduzira as grandes greves de 1978/79 no ABC paulista, para a condição de dirigente político.
Sua presença foi um choque. "Fiquei até com complexo", admite Lula, quase 20 anos depois.
Como um líder sindical, que enchia a boca para defender "a classe operária", se atrevia a entrar no reduto dourado da burguesia? A resposta de Lula à época:
"Eu quero que todo operário ganhe o suficiente para frequentar também o Gallery."
Uma resposta que não convenceu nem ele próprio, a julgar pela longa abstinência que observou desde então na frequência a locais do gênero. Foi preciso um novo convite, há cerca de dois anos, para que Lula aceitasse retornar aos templos da "burguesia".
O jornalista Elio Gaspari, hoje colunista desta Folha, levou-o para jantar no Massimo, elegante restaurante da alameda Santos, na zona central de São Paulo.
"Fui e vi que o pessoal estava pouco ligando para a minha presença", conta Lula.
Não foi bem assim, a julgar pelo depoimento de outro dos comensais, Marco Aurélio Garcia, secretário de Relações Internacionais do PT: "Foi um frisson", relembra Marco Aurélio.
Seja como for, o jantar no Massimo parece marcar um ponto de inflexão no complexo de inferioridade de Lula, provocado pelo episódio do "Gallery".
"Ele resolveu assumir toda essa contradição a respeito do preconceito que há contra ele e decidiu não mais esconder o lado humano", depõe José Dirceu, presidente nacional do PT.
Dois anos depois do jantar, em entrevista ao jornal carioca "O Globo", Lula lamentou: "Não tem coisa pior do que ser pobre e famoso. Na próxima encarnação, quero ser rico e anônimo".
Ao aceitar, depois de longa vacilação, a candidatura presidencial, Lula sepultou pelo menos por algum tempo a hipótese de passar anonimamente por restaurantes como o Massimo.
Rico, tampouco é. Vendeu a casa em que morava em São Bernardo do Campo, juntou o dinheiro apurado com parte de uma herança recebida pela mulher, Marisa, e comprou um apartamento, sempre em São Bernardo, seu berço político e sindical.
Mas não conseguiu mudar-se antes da eleição, como pretendia, porque o prédio não ficou pronto.
Para qualquer outro candidato, seria uma boa arma de campanha poder afirmar que mora, hoje, na mesma casa em que morava na eleição anterior. Não para Lula.
A casa, de propriedade de Roberto Teixeira, seu compadre, acabou se transformando no segundo momento em que Lula, eterno estilingue, virou vidraça.
O petista Paulo de Tarso Venceslau acusou Teixeira de usar a amizade com Lula para se beneficiar de contratos de assessoria para prefeituras comandadas pelo PT.
"O caso golpeou-o duramente", diz Marco Aurélio Garcia.
O primeiro momento em que o estilingue virou vidraça foi quando se soube que Lula havia solicitado a aposentadoria especial, com base na legislação que beneficia punidos pelo regime militar.
Ao contrário do caso Roberto Teixeira, não há a menor mágoa, garante Lula.
"É uma das coisas de que tenho orgulho. São 36 anos de suor, não devo um mês de serviço. Briguei na Constituinte para que os dirigentes sindicais pudessem se aposentar de acordo com o salário que tinham quando foram punidos", diz, fazendo questão de ressaltar que a verba não sai dos cofres do INSS, mas do Tesouro Nacional.
"Na minha campanha não vou esconder. Ao contrário, faço questão que conste: Luiz Inácio Lula da Silva, aposentado."
Além de aposentado e descomplexado, o Lula de 98 é diferente do Lula de 94 também nos hábitos à mesa. Confinou seu apetite à carnes brancas, peixe, saladas e massas (apenas uma ou duas vezes por semana). Antes, não havia limites. Resultado: emagreceu 17 quilos.
Parou de fumar até as cigarrilhas que haviam substituído o cigarro anos atrás. "Quando comecei a tragar até as cigarrilhas, achei que era hora de parar."
"Está de bem com a vida, com quatro filhos na universidade, o quinto no ginásio e a Lurian casada e feliz", conta seu amigo frei Betto.
Lurian, fruto de uma relação de Lula com a enfermeira Miriam Cordeiro, antes de seu casamento com Marisa, foi usada na campanha eleitoral de 89 como arma de campanha de seu adversário Fernando Collor de Mello.
Os chefes da campanha de Collor levaram Miriam para o programa eleitoral gratuito, para acusar Lula de ter pedido que ela abortasse.
Foi, talvez, o golpe mais duro que Lula sofreu na vida política, a ponto de seus amigos considerarem o episódio como o fator determinante para seu mau desempenho no segundo debate com Collor, pela TV, o que, por sua vez, teria provocado a derrota.

O ano que doeu mais
No círculo íntimo de Lula, não há consenso sobre qual das duas derrotas eleitorais provocou maiores efeitos.
"Em 1989, havia a sensação de vitória, ao passo que, em 94, a derrota era mais ou menos previsível", depõe frei Betto.
"A trajetória até 94 havia sido sempre ascendente, mesmo na derrota para o Collor, ainda mais que este rapidamente caiu. Até o real, a carreira era ascendente. Em 94 é que houve um nocaute violento", contrapõe Marco Aurélio Garcia.
Seja quem for que tenha razão, o fato é que, após a derrota de 94, Lula parecia decidido a não mais disputar pleito algum. Chegou a dizer: "É muito provável que a era Lula tenha acabado".
Ele próprio conta agora que transmitiu a todo o partido a idéia de que era preciso encontrar outro candidato.
Mas, ao mesmo tempo, dizia que "a única possibilidade de ser candidato era costurar uma aliança política que permitisse vender a idéia de que era para ganhar e não apenas para competir", sempre nas reconstituição de Lula.
Resultado: "Havia dias em que ele era candidato de manhã, deixava de ser à tarde, para voltar a ser à noite", conta Marco Aurélio.
Como, mesmo nos períodos do dia em que não era candidato, Lula tampouco ungia qualquer outro aspirante no PT, acabou caindo no que dizia recusar: o "candidato natural".
Ainda mais que a pré-condição básica imposta para aceitar a candidatura acabou de fato acontecendo: uma aliança de partidos de esquerda e centro-esquerda em torno de seu nome.
"O que parecia impossível aconteceu: a esquerda se unir fora da cadeia", brinca hoje Lula, já com todos os tiques de candidato.
Como, por exemplo, respostas que parecem decoradas para questões que fatalmente surgirão durante a campanha.
Uma delas, sobre a hipótese de fuga de capitais caso o PT ameace de fato a vitória de FHC:
"É terrorismo barato. Ou você tem uma economia sólida como a americana, a alemã, a inglesa, com desenvolvimento estável ou estará sempre vulnerável, com FHC, ACM, Maluf, Enéas, quem seja."
Outro exemplo, sobre a cobrança de fontes de recursos para financiar os suculentos programas sociais que o PT invariavelmente lança durante as campanhas:
"Essa conversa de que não tem dinheiro foge da pergunta principal: quanto custa não fazer?"
Lula tem até números concretos sobre o custo de não fazer, que promete ser tema central de sua campanha: em Brasília, cada preso custa R$ 1.400 por mês ao governo, ao passo que cada estudante custa a mesma quantia, por ano.
A tese por trás da comparação é a de que sai bem mais barato pôr todas as crianças na escola e, por extensão, afastá-las da tentação da criminalidade, do que prendê-las depois que já viraram criminosos.
É outra mudança em relação ao Lula ou, ao menos, ao PT de 94, que erigia como centrais temas mais ideológicos. Agora, não, menos porque Lula tenha se transformado em um liberal e mais porque ele desconfia que, se eleito, não haverá mais nada a manter nas mãos do Estado.
É esse Lula, mais pragmático, mais magro e mais assumido, que se lança à terceira batalha pela conquista do Palácio do Planalto.



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