São Paulo, quarta, 20 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI
O real precisa de governo

FFH (*) anunciou que a crise cambial pode vir a ser "o ressurgimento do real". "Tomara que seja assim", disse o presidente. Tomara que seja assim, responde a galera.
Será, se o governo passar a governar. Governar significa fazer coisas mais ou menos assim:
As concessionárias de serviços de energia elétrica anunciam que, diante da desvalorização da moeda, poderão elevar suas tarifas. Manda-se vir o contrato e procura-se a cláusula que ampara essa pretensão. Está faltando? Chamam- se os presidentes dessas empresas e informa-se que talvez tenha havido um mal-entendido porque, se algum deles endossar publicamente semelhante reivindicação, será processado com a ajuda de 317 procuradores e julgado pelas almas dos caetés que comeram o bispo Sardinha.
O doutor Cláudio Mauch, diretor de Fiscalização do Banco Central, anuncia, no meio do expediente, que há problemas no sistema financeiro nacional e que se vai embora. Num dia de balbúrdia no mercado, esse grão de areia no olho contribuiu para agravar a crise de credibilidade do real. Diante disso, o governo governa botando-o imediatamente no olho da rua. Deram-lhe a presidência interina do banco.
O que falta é governo. São diversos os sinais de que FHH está flutuando. Para ficar num indicador numérico, durante sua entrevista coletiva de segunda-feira, ele pronunciou um "não" a cada 27 palavras.
É um recorde. Em geral, sua média fica acima de 50. Em entrevistas, baixa para a casa dos 40, o que é compreensível, pois o uso do "não" é a melhor maneira de negar uma coisa. (O vencimento do ministro Pedro Malan, por exemplo.) Em 1994, na crise provocada pela transmissão de inconveniências que derrubou o ministro Rubens Ricupero, ele chegou à frequência mais alta: um "não" a cada 31 palavras. Logo depois do massacre de Curionópolis, em 1996, sua frequência ficou nos 37.
Essa contabilidade reflete uma espécie de pensamento ora desordenado, ora elusivo. Explicando ao mesmo tempo o grande respeito que tem pelo professor Gustavo Franco, a quem demitiu da presidência do Banco Central, FHH disse assim:
-Eu tenho uma enorme admiração pelo dr. Gustavo Franco. (...) Num dado momento, ele pode ter uma opinião, e eu, outra. Mas essas opiniões não são fixas, não são abstratas.
Coisa complicada. Durante quatro anos tiveram a mesma opinião. A certa altura, uma delas deixou de ser fixa. Tudo bem, mas qual foi a opinião que saiu do lugar? A de FFH, felizmente. Custava pouco dizer a mesma coisa, de outra maneira:
-Eu tenho uma enorme admiração pelo dr. Gustavo Franco. (...) Num dado momento, decidi mudar o câmbio. O doutor Gustavo pensava de maneira diversa, o presidente sou eu e pedi-lhe que deixasse o cargo.
Voltando ao ponto de partida, o que pode vir a ser um "ressurgimento do real"? Em primeiro lugar, só ressurge uma coisa que sumiu, algo que esteve na lona. Frans Botha, por exemplo, poderá ressurgir, talvez dirigindo uma sorveteria, mas dificilmente encarando Mike Tyson.
Virtualizou-se o real. Sumiu e ressurgiu, sem que se notasse. Os mesmos maganos que defendiam a sobrevalorização agora racionalizam a desvalorização. Aquilo que era dogma de fé, sinal de apostasia de quem o combatia, tornou-se fator de transfiguração. Beatificaram- se os hereges para preservar a santidade dos apostadores fracassados.
Não está ressurgindo coisa alguma. Houve um fracasso e agora se catam os cacos. Tudo isso é feito com grande cenografia, ora em Brasília, ora em Washington. No Palácio do Planalto ou no edifício do FMI, sede da arca da aliança, da sabedoria universal e da luz do Mercado ("y sus discipulos").
É com imensa satisfação que se reproduz aqui um parágrafo de um artigo do professor Jeffrey Sachs, da Universidade de Harvard:
"Para falar em termos simples e diretos, o FMI tem dado atenção demais aos interesses de Wall Street. Se você fosse, digamos, um banco norte- americano com investimentos no Brasil, iria querer que o país mantivesse sua taxa de câmbio até receber o retorno sobre o que investiu (depois disso, quem se importa?). Assim, você pressionaria o FMI e o Tesouro norte-americano para que exortassem o Brasil, a Rússia ou qualquer outro indefeso receptor de empréstimos do FMI a defender sua moeda. Isso lhe daria tempo para retirar seu dinheiro ainda ileso do país, antes que fossem promovidas quaisquer mudanças nos valores das moedas".
Curiosidade: o professor Sachs conseguiu dizer isso tudo sem usar a palavra "não".
²
(*) Um FFHH é igual a dois mandatos de FH. FFH, ou FHH, é igual a um FFHH flutuante, depois de uma desvalorização de 25%.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.