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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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JANIO DE FREITAS

Palavras em cena

Os ditadores também são amados. Agora revelada, a reaparição de Saddam Hussein em praça pública, no dia mesmo em que Bagdá era invadida, é mais do que outro dos divertidos deboches do ditador com Bush e com o aparato que atacou o Iraque. O vídeo mostra, além da desafiadora permanência de Saddam na própria capital, uma empolgação do povo, ao vê-lo e ouvi-lo, maior do que a soma de tudo o que as câmeras ocidentais captaram de boas-vindas iraquianas aos "libertadores".
Diante da péssima repercussão mundial ao arruinamento do Iraque, o que restava a Bush e a Tony Blair era a desculpa da "libertação": nem remotos vestígios de armas de destruição em massa foram encontrados. As crescentes manifestações de repúdio à presença anglo-americana, com a pitada desmoralizante acrescentada pelo ditador caçado, põem em xeque a "libertação".
A cena da semana foi proporcionada por Saddam, mas a frase mais importante foi de Bush, dita em discurso: "Agora que o Iraque está libertado, as Nações Unidas deveriam suspender o bloqueio econômico". A mídia não se interessou pelo alcance da frase.
A decretação do bloqueio há 13 anos, liderada na ONU pelos Estados Unidos, deixou sua suspensão condicionada à comprovada inexistência de armas de destruição em massa. Ao propor o desbloqueio, Bush reconhece a inexistência das armas, que tanto afirmou ter provas de existirem. E declara a falsidade dos motivos que levaram à guerra.
Ninguém mais indicado para fazê-lo.

Duas frases
Entre uma e outra das suas sessões de confraternização no FMI, o ministro Antonio Palocci informou haver estudado a história brasileira para não incorrer em velhos erros: "Eu só gostaria de cometer erros novos".
Ou estudou com proveito duvidoso, ou não é tão exigente quanto à novidade dos erros. É o que atesta sua decisão de ser a continuidade de Pedro Malan. Até no gênero de frases para a imprensa.
Por sua vez, e dentro da programação de retorno à ênfase de candidato, Luiz Inácio Lula da Silva assegura que "acabou o tempo em que o amigo do rei conseguia os empréstimos (...)".
Mas tal novidade inclui TV riquíssima? O esclarecimento só virá em mais algum tempo. E, até lá, convém lembrar que nem só de empréstimos se faz a transferência de dinheiro dos cofres públicos para caixas privados. A publicidade desnecessária, mas muito bem paga, é um dos outros veios.

Direitos e direitos
O vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo, distinguiu-me com um comentário, sob a forma de artigo, na Folha de quarta-feira. A seu ver, meu texto "Direitos desumanos" não foi formulado com "palavras criteriosas e de bom senso". Não seria a primeira vez, mas, neste caso, não estou convencido pelas palavras tão mais ilustres que as minhas, de leigo absoluto. E fiquei em dúvida sobre os critérios e o bom senso do vice-prefeito ao formular seu comentário.
Hélio Bicudo contesta, de início, que a origem dos direitos humanos esteja na esquerda. Considera que "foram as últimas guerras européias do século 19 e os conflitos mundiais de 1914-18 e 1939-45 que despertaram a consciência mundial para o problema dos direitos fundamentais da pessoa humana". Mesmo que não fosse mais longe, como deveria, pelo menos ao século 18 é indispensável reconhecer seus ideais e lutas, tão nítidos nos alicerces das grandiosas Revoluções Francesa e Americana.
Hélio Bicudo ampara sua opinião cronológica na sequência dos tratados envolvendo direitos da pessoa. É evidente confusão entre formulações jurídicas e os princípios e idéias que os precederam, estes sim, e só estes, referidos em meu texto. Sendo a direita, por definição, conservadora, os que pregaram idéias e lutaram contra a pressão constituem a corrente genericamente chamada de esquerda. Denominação mais que secular, se não esquecermos a "gauche" original francesa.
Embora tendo esclarecido que comentaria artigo meu, Hélio Bicudo faz críticas a temas de que não tratei, e os deixa indevidamente ligados a mim: julgamento que fuja ao "devido processo legal"; progressividade das penas; esquecimento de que "ao nosso lado residem a miséria, a fome e o desemprego", e outras considerações nesse gênero. Não creio que nessas atribuições indevidas haja o critério e o bom senso não encontrados por Hélio Bicudo no texto comentado.
Quanto ao que estava mesmo no meu texto, reafirmo a convicção de que direitos humanos não podem ser invocados para dar a preservar o direito anti-humano de certos criminosos comandarem, de dentro da cadeia, ações que matam inocentes e infernizam cidades. A respeito, diz Hélio Bicudo: "o que está acontecendo se deve à corrupção e à violência que ali [nas prisões] fazem praça". Mas quem corrompe, com altas somas obtidas no crime e com ameaças inclusive a famílias, são os mesmos mandantes das violências aterrorizantes.
A receita de Hélio Bicudo é impecável e óbvia: "precisamos investir naquilo em que nunca se investiu com seriedade: a reforma dos aparelhos policial e judicial e, como consequência, no próprio sistema penal". Perfeito. E até que haja o efeito dessa reforma de longo prazo, devem pessoas inocentes continuar morrendo queimadas em ônibus, em trens, baleadas de morte nas calçadas, nos carros, dentro de casa, só porque foi suspensa ou adiada a visita íntima a um chefão encarcerado do narcotráfico?
O artigo criticado por Hélio Bicudo criticou os protestos da esquerda, em nome dos direitos humanos, contra o projeto que autoriza o isolamento, por até 360 dias, dos criminosos encarcerados que continuem comandando crimes. Sou testemunha do que está ocorrendo no Rio. Só posso reiterar o artigo "Direitos desumanos".


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