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São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 2003

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ELIO GASPARI

O Itamaraty defendeu a patuléia globalizada

Aconteceu um daqueles episódios que fazem com que o contribuinte se orgulhe do serviço público que sustenta. O Itamaraty encrencou com o governo britânico porque ele tentou empacotar 94 brasileiros que trabalhavam na Inglaterra sem a documentação necessária, despejando-os num aeroporto qualquer. Negou licença de pouso para o vôo que traria os deportados. Em maio, o Itamaraty conseguiu que o governo americano recambiasse discretamente 260 brasileiros que estavam detidos no Texas. O governo brasileiro começa a informar que protege os seus cidadãos que saem pelo mundo em busca de trabalho. É a valorosa patuléia da globalização.
Há cerca de 2 milhões de brasileiros vivendo em outros países, 600 mil só nos Estados Unidos, talvez 20 mil na Inglaterra. Metade dessa diáspora ganha a vida sem ter os papéis em ordem. A atitude do Ministério das Relações Exteriores em defesa desse grupo, que trabalhava numa fábrica de biscoitos no interior da ilha, é um marco na relação da Casa com os nativos. O Itamaraty é bem-vindo ao andar de baixo.
De uma maneira geral, os diplomatas detestam os conterrâneos que lhes dão trabalho. (Isso vale para quase todas as nacionalidades.) No dia 7 de setembro de 2000, os brasileiros que resolveram passar no pavilhão auriverde da feira de Hannover deram com o nariz na porta. Havia um coquetel, mas só para maganos. O expediente do consulado brasileiro em Nova York ao vivo e em cores era de apenas quatro horas e meia. Os brasileiros da rua 46, uma comunidade alegre, obreira e bem-sucedida, têm medo do consulado. Acreditam que, se derem as caras por lá, o serviço de imigração americano acabará achando-os. Para evitar esse mau juízo, o consulado começou uma campanha dizendo aos residentes na cidade que "você é legal, para nós você é muito legal".
Até há bem pouco tempo, o Itamaraty não tinha nem sequer uma sala onde se tratasse dos interesses da diáspora. Mesmo hoje, há cinco subsecretarias, mas nenhuma delas se destina exclusivamente a essa comunidade que remete a Pindorama cerca US$ 4,6 bilhões por ano.
A proteção que a máquina diplomática brasileira deve à diáspora de filhos da estagnação econômica é a contrapartida do blá-blá-blá da globalização. Os capitais devem fluir livremente, e as empresas estrangeiras devem ser tratadas como se fossem sabiás. Só não deve haver liberdade de movimento para a mão-de-obra. Os Estados Unidos querem a Alca, para que circulem suas mercadorias, mas não lhes passa pela idéia deixar circularem as pessoas. Essa liberdade foi o pilar da concepção da Comunidade Européia, onde o livre comércio não se confundiu com recolonização.
O porta-voz dos conservadores ingleses disse que o Brasil certamente deportaria rapidamente um inglês sem os papéis adequados. É verdade, mas os doutores da Europa sabem que os governos de diversos Estados brasileiros fazem vista grossa para milhares de marmanjos que desembarcam nas praias de Pindorama com o propósito de fazer turismo sexual. Poderia ser criado um intercâmbio. Os turistas ingleses que viessem para o Brasil a fim de comprar mão-de-obra horizontal barata seriam deportados para o aeroporto de Gatwick com a mesma fanfarra que acompanharia o vôo dos 94 brasileiros que vendiam, em pé, sua mão-de-obra para o fabrico dos famosos biscoitos ingleses.


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