São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 2000

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MEMÓRIA
Meira Mattos detalha o período do regime militar em que foi assessor do presidente, que completaria 100 anos hoje
General reformado revela bastidor do governo Castello

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

O regime militar, que durou 21 anos (1964-85), teve um primeiro mandatário que queria encerrá-lo em pouco tempo.
O Ato Institucional 2, extinguindo os partidos políticos existentes em 1965, foi imposto ao general-presidente por colegas militares da linha-dura. Pouco depois de sair do governo, ele dizia não ter dinheiro para pagar um motorista. O presidente da República era o cearense Humberto de Alencar Castello Branco, cujo centenário oficial de nascimento se completará hoje.
O relato sobre ele é do general reformado Carlos de Meira Mattos, 87, amigo e colaborador de Castello antes e depois dos três anos de governo (1964-67).
Nascido em 20 de setembro de 1897, Castello teve a certidão modificada pelo pai em três anos para poder ingressar no Colégio Militar de Porto Alegre. Estaria fazendo, na realidade, 103 anos.
O general reformado coordenou o livro ""Castello Branco e a Revolução", reeditado pela Biblioteca do Exército na comemoração do centenário oficial do ex-presidente. Meira Mattos falou à Folha na semana passada sobre bastidores do governo Castello.

Folha - Castello Branco só aderiu ao movimento contra Goulart em março de 1964. Como um conspirador de última hora tornou-se o primeiro presidente do novo regime?
Carlos de Meira Mattos -
O presidente Castello Branco era a figura de maior prestígio do Exército. A Revolução foi conspirada por grupos que mal se ligavam...Aqui mesmo no Rio havia duas ou três conspirações. Havia a de Minas, a do Paraná, a de Pernambuco. Esses grupos estavam carentes de chefia. Nenhum aceitava a chefia do outro. Até que o presidente Castello se convenceu de que não era possível mais aguentar coisas que estavam acontecendo no governo João Goulart.

Folha - A quebra de hierarquia militar em especial?
Meira Mattos -
Ficou bem caracterizado que eles queriam fechar a Câmara e criar um Estado sindicalista. Isso tudo promovido com o apoio de gente do governo Goulart. Havia inversão de hierarquia militar em assembléias, o que provocou comoção no Exército.

Folha - Iniciado em 1964, o regime militar terminou 21 anos depois, em 1985. O plano de Castello não era os militares ficarem pouco tempo no poder?
Meira Mattos -
Esse era o desejo dele. Não foi realizado por várias razões. Talvez ele pudesse realizar, mas se autolimitou em prazo. Numa revolução que tinha atos institucionais que permitiam cassar, tirar os direitos políticos, em que vários governadores perderam o cargo, o presidente da República disse que só assumiria se fosse para completar o mandato (de João Goulart). Para terminar o mandato, faltavam dois anos. Aí foi um esforço enorme para que aceitasse mais um.

Folha - O plano de Castello, que adiou a eleição presidencial direta, era mesmo entregar o governo para um civil?
Meira Mattos -
Em 1965, ele me disse num jantar: ""Nesse problema da sucessão, não quero interferir. Mas temos aí em vista civis, anfíbios (militares há muito tempo na política) e militares que podem ser presidentes".
Ele disse: ""Civis, há o Bilac Pinto (deputado federal) e o Milton Campos (ministro da Justiça); anfíbios, o Nei Braga (governador do Paraná) e o Juraci (Magalhães, embaixador nos EUA); militares, o Costa e Silva (ministro da Guerra, sucessor de Castello na Presidência) e o Mamede (Jurandir de Bizarria, comandante da 8ª Região Militar, em Belém).
Disse ainda: ""O Costa e Silva quer ser presidente da República. Ele tem todo o direito de aspirar".
Entre os seis nomes, quatro são praticamente civis. Mas caímos sempre naquilo. Ele tinha uma oposição muito grande. Eram os revolucionários radicais.

Folha - Como foi a decisão de fechar o Congresso em 1966?
Meira Mattos -
A versão é de que o Congresso foi fechado, mas ele já estava fechado. Era proximidade de eleição, e os parlamentares decidiram decretar um recesso a fim de irem aos seus Estados tratar das suas eleições. O presidente suspendeu os direitos políticos de seis deputados. Aí um grupo de parlamentares resolveu por contra própria ir para o Congresso e abri-lo ilegalmente. Criou-se uma situação de rebeldia. Era um escândalo: o Congresso estava funcionando ilegalmente.

Folha - Como o senhor foi escolhido para liderar a operação?
Meira Mattos -
Eu tinha chegado da República Dominicana havia uns 20 dias. Tinha assumido o comando do Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília. Um assessor do Castello me chamou. Disse que o presidente queria falar comigo no telefone do palácio, porque era o único que tinha misturador de vozes, não podia ser grampeado. Quem atendeu o telefone foi o ministro do Exército, Ademar de Queirós.
Disse: ""Coronel Meira Mattos, o presidente tem uma missão para o senhor. Esse problema do Congresso não pode continuar. São reuniões ilegais, eles não têm número suficiente para formalizar o fim do recesso. O presidente deseja que se retire aquele pessoal todo que se alojou lá dentro".
Eu perguntei: ""Quando?" Era noite. Ele: ""Fica a teu critério, até o amanhecer".
Aí, o Ademar de Queirós disse: ""O presidente vai lhe dar uma palavra". O presidente disse: ""Meira Mattos, você entendeu bem a missão?" Eu disse: ""Entendi".
""Tem alguma pergunta?"
""Não".
""Então vou lhe fazer a minha única recomendação: ninguém vai sair com um arranhão sequer dessa missão sua." Fui ao amanhecer, pelas 5h. E ninguém levou um arranhão.

Folha - Contra a linha-dura, Castelo defendeu a posse dos governadores de oposição eleitos no Rio e em Minas em 1965. Mas baixou o Ato Institucional número 2, extinguindo os partidos políticos. Como foi tomada essa decisão?
Meira Mattos -
O presidente assinou o ato 2 a contragosto. Foi uma das coisas que teve que aceitar a fim de manter sua autoridade. O ato 2 já vem depois da guerrilha, que tornou a pressão dos radicais do Exército muito forte.

Folha - Desde 1964 havia relatos de tortura. Qual era a reação de Castello?
Meira Mattos -
Quando correram boatos de que havia tortura em Recife, ele designou o general Geisel (Ernesto, então chefe do Gabinete Militar, depois presidente de 1974 a 1979) para ir em pessoa averiguar. Ele tinha uma vigilância permanente contra isso. Nunca houve governo revolucionário que fosse a favor da tortura. Mas você não evita que pessoas doentes gostem de torturar.

Folha - Na sua opinião, a tortura era uma questão pessoal, não de Estado?
Meira Mattos -
Sim. Uma falha psicológica, um sadismo. Com revolução ou sem revolução há pessoa para quem não se pode dar autoridade.

Folha - Quais eram os planos de Castello Branco para depois da Presidência?
Meira Mattos -
Em matéria de função pública ou privada, nenhum. Pouco antes de terminar a Presidência, resolveu fazer uma pequena reforma no seu apartamento, na rua Nascimento Silva (Ipanema, zona sul do Rio).
Queria dirigir automóvel, os amigos fizeram uma força enorme para contratar um motorista, mas ele disse que o salário não dava. Fizemos uma pressão grande, ele contratou motorista. Ele me dizia: ""Esse pessoal me respeita tanto que, sabendo que eu estou fazendo uma obra no meu apartamento, ninguém teve coragem de me oferecer um tijolo".


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