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LANTERNA NA POPA
No clube dos caloteiros...
ROBERTO CAMPOS
²
Não sei se será grande consolo,
mas não estamos sozinhos. Estou
falando de dívidas dos governos.
Governos, parece que são pragas
universais, insuscetíveis de cura
por nenhum antibiótico político.
Os Estados Unidos, por exemplo,
são vistos como um país que parece ter algum juízo fiscal. Bem,
"modus in rebus". Lá pelo final
do século 18, o governo americano arrecadava de 1% a 2% do
PIB (agora ele está empatado
com o Brasil, sugando cerca de
32%). Os Estados da Federação
americana tinham metade disso,
mas gastavam mais do que arrecadavam e se endividavam para
construir pontes e canais e outras
atividades úteis (não, felizmente, para as despesas com as folhas
de pagamentos!). Naqueles tempos rústicos, "marajás" eram
dignitários hindus, não cargos
públicos.
O fato é que, no início da década de 1840, houve uma forte crise
recessiva, e nove Estados ficaram
inadimplentes - isto é, entraram em "default", termo inglês
que soa familiar entre nós. Desses nove, quatro repudiaram no
todo ou em parte as suas dívidas.
Mississipi foi o grande caloteiro.
Porém mesmo Estados antigos,
até então respeitabilíssimos, como Pensilvânia e Maryland, caíram na gandaia... Criticava-se-
lhes o descuido, a covardia política (falta de coragem de cobrar
mais impostos) e a imoralidade
financeira. Mas o governo central não encampou dívidas dos
Estados perdulários. Naqueles
tempos atrasados, essas práticas
de tolerância caloteira ainda
não eram conhecidas.
Houve um contínuo salto do
endividamento, ligado quase
sempre a episódios bélicos. Em
1865, com a Guerra da Secessão,
a dívida ultrapassou pela primeira vez a casa do bilhão de dólares. A casa dos trilhões seria ultrapassada em 1981, como resultado da Guerra do Vietnã, das
crises dos anos 70 e do surto do
Estado assistencial (a "Great Society" do presidente Lyndon
Johnson). Hoje a dívida alcançou US$ 5,6 trilhões, ou seja, 76%
do PIB. Registrem-se, no caso
americano, atenuantes ausentes
no cenário brasileiro. A gigantesca dívida é voluntariamente financiada por nativos e estrangeiros a prazos longos e juros
módicos e pagável em moeda nacional. No ano fiscal 1997-1998,
registrou- se pela primeira vez
em muitos anos um superávit,
mas não se sabe se essa interrupção na escalada do endividamento é duradoura. Vejamos a
escalada:
Há outros probleminhas que não
são lá tão diferentes dos nossos.
Programas federais de saúde, insignificantes em 1955, montavam, em 1975, a US$ 20 bilhões,
em 1985, a quase US$ 80 bilhões
e, em 1995, a US$ 160 bilhões. E
vinculações do orçamento federal (praga que conhecemos bem,
e hoje nos torna quase ingovernáveis) atingiram, em 1973, 45%
do orçamento (já consequência
da "Great Society" dos democratas), e, em 1993, 61%. Prevê-se
que atinjam, em 2003, 73,3%.
Mas não vamos atribuir à politicagem de uma democracia presidencialista a invenção dessa
fórmula. Os ingleses, esses mesmos que agora têm o Tony Blair,
em 1930 deram um calote de US$
12,8 bilhões nos Estados Unidos
(qualquer coisa, hoje, como uns
US$ 140 bilhões). Por conta da
Primeira Guerra Mundial, deixaram de ser pagos uns US$ 30
bilhões, equivalentes hoje a mais
ou menos uns US$ 360 bilhões. E
ficou por isso mesmo. Gente fina
é outra coisa...
Não me interpretem mal. Não
estou querendo justificar nenhuma forma de países, Estados,
municípios ou "pessoas físicas"
darem golpe no alheio. Pretendo
apenas mostrar que somos todos
feitos da mesma massa humana
e que ninguém nasce com a virtude já embutida. E as razões do
descontrole são as mesmas. Vem
ocorrendo uma lenta mudança
na cultura e nos valores. Há um
século e meio, os indivíduos esperavam, antes de mais nada, de si
próprios, a conquista do seu lugar ao sol. Trabalho, luta, persistência. Aos poucos, porém, começou a cultura da dependência
mágica: alguém (e, já que a crença em Deus amoleceu, se espera
que o governo entre no lugar dele), para distribuir benesses
-"graças", na verdade, porque
são dadas sem contrapartida de
nenhuma obrigação. Do socialismo humanista másculo de Marx
escorreu um pastoso subsocialismo malandro do sustento gratuito. É fácil fazer dívidas e empurrá-las para as gerações futuras.
Por outro lado, elas estarão herdando o fruto do trabalho acumulado.
Já sei, claro, que as circunstâncias mudaram. Temos hoje populações gigantescas, urbanizadas, fragmentadas, não mais em
classes, mas em níveis de capacidade produtiva e conhecimento.
E também sei que sistemas muito
complexos tendem a exibir comportamentos quase periódicos e
até caóticos. Mas muito dos desequilíbrios macroeconômicos que
nos ameaçam não são, como vimos, privilégio especial de algum
"subdesenvolvimento". Resultam da tendência hedonística
generalizada a tratar da satisfação imediata, empurrando a
conta para o futuro. A medida é
difícil e depende de bom senso,
produto escasso ao sul do Equador...
Deixo para o fim um fato realmente sério. Nestes últimos dias,
autoridades fiscais, policiais e
militares da Aeronáutica organizaram uma gigantesca operação de fiscalização de bagagens
de viajantes, obrigando as pessoas, depois de vôos cansativos, a
esperas de horas, com revistas
humilhantes até fora do local de
desembarque, inclusive na estrada! (Se alguns turistas foram colhidos na malha, certamente jamais voltarão ao país). Não é
preciso dizer que esse tipo de violência não tem exemplo em país
civilizado algum: violação dos
direitos mais elementares dos cidadãos, que, além de tudo mais,
não poderiam ter sua bagagem
examinada à força depois de estarem dentro do país.
É tempo de o governo fazer
uma pesquisa de opinião sobre o
que o povo acha do aparelho fiscal a que está submetido. Convencer-se-ia rapidamente de que
os impostos clássicos declaratórios de renda, vendas ou serviços
não têm mais funcionalidade.
Resultam em "subdeclarações"
pelo contribuinte irritado pela
magra contrapartida dos serviços, pela complexidade do sistema e pela percepção de que muitos agentes do fisco se tornaram
sócios do fisco. Além de que as
"declarações" e "notas fiscais"
são relíquias artesanais na era
eletrônica.
Em vez de perder tempo remendando o obsoleto, como o fez
em sua proposta fiscal, o governo
deveria patrocinar o projeto do
deputado Luiz Roberto Ponte
(PMDB-RS), já aprovado em comissão especial da Câmara dos
Deputados e pronto para o plenário. Ele substituiria as contribuições sociais por um imposto
de transações financeiras e os demais impostos arrecadatórios
por tributação eletrônica, cobrada na fonte sobre insumos produtivos indispensáveis e consumo dispensável. Simplicidade,
automaticidade e insonegabilidade devem ser as características
de um sistema fiscal ajustado à
era eletrônica.
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Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do
Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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