São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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LANTERNA NA POPA
No clube dos caloteiros...

ROBERTO CAMPOS
² Não sei se será grande consolo, mas não estamos sozinhos. Estou falando de dívidas dos governos. Governos, parece que são pragas universais, insuscetíveis de cura por nenhum antibiótico político. Os Estados Unidos, por exemplo, são vistos como um país que parece ter algum juízo fiscal. Bem, "modus in rebus". Lá pelo final do século 18, o governo americano arrecadava de 1% a 2% do PIB (agora ele está empatado com o Brasil, sugando cerca de 32%). Os Estados da Federação americana tinham metade disso, mas gastavam mais do que arrecadavam e se endividavam para construir pontes e canais e outras atividades úteis (não, felizmente, para as despesas com as folhas de pagamentos!). Naqueles tempos rústicos, "marajás" eram dignitários hindus, não cargos públicos.
O fato é que, no início da década de 1840, houve uma forte crise recessiva, e nove Estados ficaram inadimplentes - isto é, entraram em "default", termo inglês que soa familiar entre nós. Desses nove, quatro repudiaram no todo ou em parte as suas dívidas. Mississipi foi o grande caloteiro. Porém mesmo Estados antigos, até então respeitabilíssimos, como Pensilvânia e Maryland, caíram na gandaia... Criticava-se- lhes o descuido, a covardia política (falta de coragem de cobrar mais impostos) e a imoralidade financeira. Mas o governo central não encampou dívidas dos Estados perdulários. Naqueles tempos atrasados, essas práticas de tolerância caloteira ainda não eram conhecidas.
Houve um contínuo salto do endividamento, ligado quase sempre a episódios bélicos. Em 1865, com a Guerra da Secessão, a dívida ultrapassou pela primeira vez a casa do bilhão de dólares. A casa dos trilhões seria ultrapassada em 1981, como resultado da Guerra do Vietnã, das crises dos anos 70 e do surto do Estado assistencial (a "Great Society" do presidente Lyndon Johnson). Hoje a dívida alcançou US$ 5,6 trilhões, ou seja, 76% do PIB. Registrem-se, no caso americano, atenuantes ausentes no cenário brasileiro. A gigantesca dívida é voluntariamente financiada por nativos e estrangeiros a prazos longos e juros módicos e pagável em moeda nacional. No ano fiscal 1997-1998, registrou- se pela primeira vez em muitos anos um superávit, mas não se sabe se essa interrupção na escalada do endividamento é duradoura. Vejamos a escalada:
Há outros probleminhas que não são lá tão diferentes dos nossos. Programas federais de saúde, insignificantes em 1955, montavam, em 1975, a US$ 20 bilhões, em 1985, a quase US$ 80 bilhões e, em 1995, a US$ 160 bilhões. E vinculações do orçamento federal (praga que conhecemos bem, e hoje nos torna quase ingovernáveis) atingiram, em 1973, 45% do orçamento (já consequência da "Great Society" dos democratas), e, em 1993, 61%. Prevê-se que atinjam, em 2003, 73,3%.
Mas não vamos atribuir à politicagem de uma democracia presidencialista a invenção dessa fórmula. Os ingleses, esses mesmos que agora têm o Tony Blair, em 1930 deram um calote de US$ 12,8 bilhões nos Estados Unidos (qualquer coisa, hoje, como uns US$ 140 bilhões). Por conta da Primeira Guerra Mundial, deixaram de ser pagos uns US$ 30 bilhões, equivalentes hoje a mais ou menos uns US$ 360 bilhões. E ficou por isso mesmo. Gente fina é outra coisa...
Não me interpretem mal. Não estou querendo justificar nenhuma forma de países, Estados, municípios ou "pessoas físicas" darem golpe no alheio. Pretendo apenas mostrar que somos todos feitos da mesma massa humana e que ninguém nasce com a virtude já embutida. E as razões do descontrole são as mesmas. Vem ocorrendo uma lenta mudança na cultura e nos valores. Há um século e meio, os indivíduos esperavam, antes de mais nada, de si próprios, a conquista do seu lugar ao sol. Trabalho, luta, persistência. Aos poucos, porém, começou a cultura da dependência mágica: alguém (e, já que a crença em Deus amoleceu, se espera que o governo entre no lugar dele), para distribuir benesses -"graças", na verdade, porque são dadas sem contrapartida de nenhuma obrigação. Do socialismo humanista másculo de Marx escorreu um pastoso subsocialismo malandro do sustento gratuito. É fácil fazer dívidas e empurrá-las para as gerações futuras. Por outro lado, elas estarão herdando o fruto do trabalho acumulado.
Já sei, claro, que as circunstâncias mudaram. Temos hoje populações gigantescas, urbanizadas, fragmentadas, não mais em classes, mas em níveis de capacidade produtiva e conhecimento. E também sei que sistemas muito complexos tendem a exibir comportamentos quase periódicos e até caóticos. Mas muito dos desequilíbrios macroeconômicos que nos ameaçam não são, como vimos, privilégio especial de algum "subdesenvolvimento". Resultam da tendência hedonística generalizada a tratar da satisfação imediata, empurrando a conta para o futuro. A medida é difícil e depende de bom senso, produto escasso ao sul do Equador...
Deixo para o fim um fato realmente sério. Nestes últimos dias, autoridades fiscais, policiais e militares da Aeronáutica organizaram uma gigantesca operação de fiscalização de bagagens de viajantes, obrigando as pessoas, depois de vôos cansativos, a esperas de horas, com revistas humilhantes até fora do local de desembarque, inclusive na estrada! (Se alguns turistas foram colhidos na malha, certamente jamais voltarão ao país). Não é preciso dizer que esse tipo de violência não tem exemplo em país civilizado algum: violação dos direitos mais elementares dos cidadãos, que, além de tudo mais, não poderiam ter sua bagagem examinada à força depois de estarem dentro do país.
É tempo de o governo fazer uma pesquisa de opinião sobre o que o povo acha do aparelho fiscal a que está submetido. Convencer-se-ia rapidamente de que os impostos clássicos declaratórios de renda, vendas ou serviços não têm mais funcionalidade. Resultam em "subdeclarações" pelo contribuinte irritado pela magra contrapartida dos serviços, pela complexidade do sistema e pela percepção de que muitos agentes do fisco se tornaram sócios do fisco. Além de que as "declarações" e "notas fiscais" são relíquias artesanais na era eletrônica.
Em vez de perder tempo remendando o obsoleto, como o fez em sua proposta fiscal, o governo deveria patrocinar o projeto do deputado Luiz Roberto Ponte (PMDB-RS), já aprovado em comissão especial da Câmara dos Deputados e pronto para o plenário. Ele substituiria as contribuições sociais por um imposto de transações financeiras e os demais impostos arrecadatórios por tributação eletrônica, cobrada na fonte sobre insumos produtivos indispensáveis e consumo dispensável. Simplicidade, automaticidade e insonegabilidade devem ser as características de um sistema fiscal ajustado à era eletrônica.
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Roberto Campos, 81, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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