São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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JANIO DE FREITAS
A livre ferocidade

Firmada a conclusão de que governo, no Brasil, não precisa de mais leis para assegurar o respeito aos direitos pessoais, senão de praticar as que já existem em abundância, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos firmou agora um compromisso para ajudar o Brasil, até com apoio financeiro, a aplicar suas leis. A constatação foi perfeita, a idéia de solução falha por excesso de otimismo.
Governo, seja federal ou estadual, só não aplica as leis que não quer aplicar. É esse o caso das leis cuja inaplicação deixou abismada a alta comissária Mary Robinson, ao constatar a violência da repressão aos movimentos reivindicatórios, o desprezo pelos direitos dos indígenas, o horror das condições carcerárias, a permanência da discriminação racial, a criminalidade da polícia, e por aí afora.
Nada do que motivou a oferta de apoio da ONU depende, mesmo, de ajuda, ou de qualquer outra coisa que não seja apenas a decisão governamental. Ou, o que dá no mesmo, conveniência governamental.
A livre ferocidade com que os movimentos reivindicatórios e de protesto são atacados pela polícia, como aconteceu em Porto Seguro, como acaba de acontecer em São Paulo, coincide à perfeição com o desejo governamental de não se ver confrontado por protestos e reivindicações que expõem suas ineficácias. O caso dos professores e funcionários federais e estaduais, da manifestação em São Paulo, é característico da relação íntima entre o sentido da manifestação pública e o desrespeito, pelo governo e seus instrumentos de força, às leis de direitos civis da população.
O governo está entalado pela política de defesa do real. No primeiro mandato, Pedro Malan dizia serem necessários três a quatro anos para que a estabilidade do real prescindisse das pesadas restrições orçamentárias, cambiais e outras. Fernando Henrique Cardoso falava em dois anos, apregoando a formidável contribuição que o governo receberia com a venda das empresas estatais. O real fará seis anos no mês que vem, e são cada vez mais rígidas as restrições exigidas por sua estabilidade e pelo FMI.
As restrições são dirigidas, porém, pelo autoritarismo implícito no poder extraordinário que se concentra na dedicação exclusiva do governo ao real e ao acordo com o FMI. Ao mesmo tempo em que a diretoria da Petrobras é autorizada a se autoconceder um aumento que lhe dobra os salários, os professores universitários não podem desejar mais do que seus atuais vencimentos inferiores ao de servidor de cafezinho no Planalto. Para os militares já está em estudo mais um aumento, que pode ser muito justificado, mas o funcionalismo civil, sem instrumentos de pressão, não pode ter um pouco compensada sua vasta perda de poder aquisitivo.
Danem-se os professores e as universidades, os médicos e os hospitais, o funcionalismo em geral e os serviços públicos idem. Mas é natural que, enquanto se percebem oprimidos, protestem. Pelos únicos meios de que dispõem -a greve e a manifestação constrangedora- no país sem meios de representação civil e com meios de comunicação nada interessados na população aquém da classe média alta.
Nesse ponto a questão se torna simples: se o trânsito fosse interrompido na avenida Paulista por uma manifestação de apoio a Fernando Henrique ou Mário Covas, a PM atacaria os manifestantes com gás e balas de borracha?
O efeito imediato dos ataques a protestos é negativo, pela má repercussão. Governo e comandantes sabem disso. Mas, de uma parte, atende ao instinto de polícias instruídas para a animalidade até o limite do crime; de outra, atende aos governantes pela intimidação a outras possíveis manifestações. É a conveniência da repressão feroz aos que não compreendem que, apesar de todos os disfarces, o Brasil, do ponto de vista institucional, continua sob regime autoritário e mais dedicado do que nunca a servir à classe que compõe o poder econômico.


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