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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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ELIO GASPARI

Um sucesso: as cotas de Lula

Dentro de alguns dias, Lula poderá cumprir uma de suas promessas de campanha, a da criação de cotas para a entrada de estudantes negros nas universidades públicas. Hoje, o Brasil tem 3,5 milhões de universitários, e 98% deles são brancos. As medidas costuradas pelo governo petista representarão uma vitória da inteligência e do sentido de justiça sobre o privilégio e o racismo. Num exemplo hipotético, concebido com números próximos da realidade, o sistema de cotas funcionará assim:
Uma faculdade de medicina tem cem vagas, mil candidatos, 200 dos quais são negros, e comprometeu-se com uma cota de 20%. No exame vestibular da universidade, a nota de corte para medicina está em 3.500 pontos, e 25 negros conseguem batê-la. O fato de um estudante ultrapassar essa barreira não lhe garante a vaga. No caso, ele precisa se classificar entre os cem primeiros candidatos. Atualmente, em situações semelhantes, só um ou dois negros conseguem a classificação.
O novo sistema matriculará os 20 negros (a cota de 20%) que tiveram as melhores notas acima da linha de corte. No exemplo, cinco ficam de fora. Se o número de negros com notas acima da linha de corte for inferior ao tamanho da cota, ela não será preenchida.
O mecanismo foi concebido na Secretaria Especial de Políticas de Promoção e de Igualdade Racial e deve-se ao trabalho de três professores: João Carlos Nogueira (da Universidade Federal de Santa Catarina), Dora Lúcia Bertulio (da Universidade Federal do Paraná) e José Jorge (da Universidade de Brasília). Eles desataram o nó retórico amarrado pela gestão tucana do Ministério da Educação, segundo o qual as cotas violentariam o processo de seleção por mérito do exame vestibular. As cotas de Lula respeitarão o mérito: nenhum negro será matriculado sem ter conseguido a nota de corte.
Um negro poderá se classificar tendo conseguido uma nota inferior à de um branco. Dando números aos bois: no sistema atual, entram 98 brancos e dois negros; no novo, serão 80 brancos e 20 negros. Ou seja, 18 brancos ficarão de fora, apesar de terem conseguido notas melhores. Isso não é uma anomalia, é a essência de qualquer programa de ação afirmativa por meio da adoção de cotas. Anomalia é um sistema de ensino superior com 98% de estudantes brancos.
O direito das universidades de criarem mecanismos para facilitar a entrada de negros nos seus cursos foi resolvido nos Estados Unidos na década de 70. Lá, a Corte Suprema entendeu que o futuro de um país depende da formação de uma elite tão diversificada quanto a sua população. O juiz Lewis Powell, que desempatou a votação, era um sulista, em cujo escritório de Atlanta nunca se contratara um advogado negro. Tomando-se o exemplo da hipotética faculdade de medicina, vê-se que hoje ela forma 980 médicos brancos e 20 negros a cada dez anos. Com as cotas, em dez anos terão sido formados 200 médicos negros.

O assessor que tirou o PT do sério

Ficou fina a pele dos petistas federais. Na tarde de 1º de dezembro, numa reunião de líderes parlamentares (acompanhados por seus assessores) realizada no gabinete do senador Aloizio Mercadante, o economista José Roberto Afonso ajudava parlamentares do PSDB e do PFL. Ele insistia em mostrar aos senadores da oposição que a mudança de cálculo da Cofins provocaria um aumento da carga tributária. A certa altura, o senador Mercadante reclamou, dizendo que a cada intervenção do assessor atrasava-se o andamento da negociação. Afonso prontificou-se a sair da sala. Passou um pouco e o relator Romero Jucá impacientou-se: "Você parece o Chacal, aquele terrorista". (Carlos, o Chacal, vive trancafiado numa cela, em Paris, depois de ter planejado alguns atentados espetaculares nos anos 70.)
É possível que o Brasil fique melhor se José Roberto Afonso não for mais levado às reuniões na sala do senador Mercadante. Ele é economista concursado do BNDES, tem 42 anos e não precisa bajular o governo. Mesmo assim, não custa comparar o que ele dizia com a parolagem do PT-Federal.
Segundo Afonso, a mudança no cálculo da Cofins provocaria um aumento da carga tributária. Arriscava dizer que seria de pelo menos R$ 3 bilhões. Os senadores petistas e o governo asseguravam: não haverá aumento da carga.
No dia 2 de dezembro, o secretário-executivo da Fazenda, Arno Augustin, deixou escapar que a nova Confins daria ao governo pelo menos R$ 4 bilhões.
No dia 3, uma nota oficial do Ministério da Fazenda corrigiu o número: serão R$ 5,8 bilhões.
No dia 12, o senador Jorge Bittar relatou a proposta orçamentária do governo. Ela prevê uma arrecadação adicional de R$ 9,1 bilhões graças às mudanças da Cofins. No relatório que acompanhou as tabelas, Bittar usou outro número: R$ 12,1 bilhões.
José Roberto Afonso é um homem de sorte: não se filiou ao PT. Se o tivesse feito, veria o que é bom para a tosse.

A escola Zé Ketti de economia

Como parte das comemorações do primeiro ano de governo Lula (décimo da era da ekipekonômica), os números da relação da dívida pública com o PIB comprovam o tamanho da ruína que o estagnossauro faz na economia nacional. Em janeiro, quando Lula passou a circular num Omega australiano, a dívida equivalia a 55% da produção nacional. Em outubro, essa relação estava em 58%. De acordo com os números do IBGE, ela deverá fechar o ano com a pior relação da história, encostando em 60%.
Esse é um dos principais indicadores da saúde de uma política econômica. Mede aquilo que os economistas (e os banqueiros) chamam de "sustentabilidade da dívida".
Lula e a ekipekonômica matricularam-se na Escola Zé Ketti de Pensamento Econômico: "Este ano não vai ser igual àquele que passou". Como o estagnossauro não tem memória, ele faz qualquer projeção. Em 1995, quando a dívida correspondia a 32% do PIB, o FMI estimou que em 2000 ela estaria em 15%. Acabou em 50%. Daí em diante, o FMI e a ekipe traçaram seis outras curvas. Todas declinantes, todas erradas. A taxa básica de engano ficou em 10%.
Em agosto de 2001, os sábios projetaram uma relação de 52% para 2004. Nem Lula promete isso. O estagnossauro é um animal descoberto pelo senador José Sarney. Ele faz coisas espetaculares, como conseguir um aumento do desemprego industrial durante o mês de outubro.

Provão e provinha

O projeto de mudança do provão preparado pelo ministro Cristovam Buarque prevê a possibilidade de substituição dos exames universais por um sistema de amostragem.
As pesquisas de opinião estão aí para mostrar que a amostragem é um critério razoável de aferição. Com essa crença, o ministro Buarque insiste: o provão será mantido.
Faria melhor se dissesse que o provão será mantido em algumas faculdades, onde o MEC continuará aplicando exames universais. Em outras, com a avaliação por amostragem, Cristovam Buarque criará a provinha.
A provinha é um bom começo para o desmanche do provão.
Ela atende aos interesses de dois grupos. Num estão aqueles que, por algum motivo, acham que são o que há de melhor nas universidades. No outro ficam os que, por todos os motivos, sabem que são o que há de pior.

Foi mal

É muito difícil que Lula volte a falar na criação de uma zona de livre comércio para os países em desenvolvimento.
De onde ele tirou a idéia, não se sabe. Sabe-se que um acordo do gênero com a China teria um efeito sobre a economia brasileira muito pior que uma vitória das tropas de Solano López contra o duque de Caxias.

Aviso amigo

Circula no governo um estudo mostrando que os comissários devem tomar cuidado antes de iludir a choldra com as promessas de crescimento econômico em 2004.
Primeiro, porque os maus indicadores do fim de ano não autorizam maiores esperanças para o início de 2004. Segundo, porque, mesmo havendo um início de retomada, ela não gerará empregos na quantidade sugerida pela parolagem da ekipekonômica.

Boa notícia

O setor automotivo do Paraná fez festa em 2003. Seus trabalhadores conseguiram uma antecipação salarial em abril e firmaram um acordo no qual receberam um aumento real de 2%. Pelo lado da produção, as fábricas de máquinas agrícolas tiveram tanta encomenda que importaram pneus. Estão produzindo 14 colheitadeiras por dia.
Novidade na Volkswagen: a montadora de automóveis de São José dos Pinhais trabalhará só para o mercado externo. A fábrica de São Bernardo ficará com a produção interna.

ENTREVISTA

Adilson de Oliveira

(58 anos, professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro)

- Em que vai dar a nova política energética do governo?
- Num primeiro momento, em redução dos investimentos privados. Mais adiante, ficaremos vulneráveis a novos apagões. Num regime normal de chuvas, com o crescimento econômico que o governo promete, teremos racionamento dentro de quatro anos. O Ministério das Minas e Energia criou um novo tipo de interferência do Estado na economia: quer controlar e gerir os investimentos do setor empresarial. Pretende dizer onde deve ficar a usina e quanto deve produzir. Há casos em que ele orienta e estimula os investimentos privados. Por exemplo: quando decide aumentar a produção de energia térmica numa região. A proposta do ministério vai muito além. Nela, o governo decide tudo e deixa o risco para os empresários. Não sei o que se poderá oferecer nas chamadas Parcerias Público-Privadas, mas o meu medo é que se retorne ao velho sistema: quando as coisas vão bem, Brasília enxota os investidores, até que surge a ameaça de racionamento. Nessa hora, emparedado, o governo faz tudo que os empresários pedem. Foi isso que aconteceu em 2001. Para atrair investimentos, fizeram concessões indevidas. No final, quem pagou (e pagará) a conta será o consumidor.
- O governo anterior produziu apagão, privataria e financiamentos ruinosos como o do BNDES para a AES. O que se pode fazer para evitar a repetição desses desastres?
- Os grandes erros dos tucanos foram falta de trabalho na regulamentação e falta de humildade no reconhecimento da importância da gestão. O problema da gestão está intocado. Percebe-se que o governo quer mandar mais, mas não se sabe para quê. Brasília criou uma empresa de planejamento, atribuiu-lhe a função de organizar o setor e avisou que tudo dependerá de um regulamento, que só virá depois de março. É o mesmo erro dos tucanos, o desprezo pelo detalhe. Acabaram as privatizações ruinosas e os financiamentos absurdos. Pretende-se criar um sistema de leilões para a compra de energia. Essas foram boas mudanças. Fez-se uma verdadeira faxina no salão, mas não basta. Do jeito que as coisas vão, a sala estará limpa, mas ficará no escuro. Se o ministério acredita que terá recursos públicos para financiar o modelo dirigista que ofereceu aos empresários, tudo bem. Como diria o Garrincha, falta combinar com os russos e com o ministro Antonio Palocci.
- O que o senhor propõe?
- Para evitarmos apagões, o governo precisa de uma política de águas. Quando as empresas querem fazer caixa, abrem as comportas, geram fluxo de água e vendem energia. Parece fácil, mas, quando o reservatório está vazio, não há fluxo de caixa que o encha. Minha segunda proposta relaciona-se com as tarifas. Entre 1998 e 2002, no Rio, elas subiram 165%. Uma família com renda de R$ 2.000 por mês pagava R$ 45 de luz. Hoje, ela paga R$ 120. Proponho que o governo se valha dos leilões para fazer com que o mercado funcione. Com o que se está propondo, os leilões serão parte de um sistema que desaguará numa tarifa única. Essa experiência é velha e é fracassada. Eu proponho que o governo estabeleça apenas um teto para o preço da energia. Abaixo dele, por meio de leilões, dançará o mercado.


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