São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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EM CAMPANHA

Produtos apreendidos em ações de repressão ao contrabando são dados a redutos de deputados

Políticos apadrinham doações da Receita

ELVIRA LOBATO
da Sucursal do Rio

DAVID FRIEDLANDER
da Reportagem Local

Produtos apreendidos pela Receita Federal em ações de repressão ao contrabando têm sido doados a prefeituras com apadrinhamento de deputados, que colhem os dividendos políticos das doações em seus redutos eleitorais.
O líder do PPB na Câmara, deputado Odelmo Leão (MG), distribuiu agasalhos, calçados e brinquedos que haviam sido apreendidos no porto de Santos e doados pelo secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, às prefeituras de Uberlândia, Monte Carmelo e Prata, no Triângulo Mineiro, base eleitoral do deputado.
Nas solenidades públicas para a entrega dos produtos, Odelmo Leão é apresentado pelos prefeitos como responsável pela obtenção das mercadorias na Receita.
Levantamento feito pela Folha nos arquivos da Superintendência da Receita em São Paulo mostra que Everardo Maciel aprovou um pedido de doação encaminhado pelo atual chefe da Secretaria Geral da Presidência, ministro Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), e pelo menos 13 pedidos do deputado federal Jorge Maluly Neto (PFL-SP) para prefeituras do interior de São Paulo.
Nos casos de Nunes Ferreira e Maluly Neto, os ofícios expedidos por seus gabinetes, em Brasília, solicitando a ajuda às prefeituras, foram arquivados como partes do processo junto com os comprovantes de autorização (chamados atos declaratórios) assinados por Everardo Maciel. Até os envelopes com timbre da Câmara dos Deputados estão arquivados.
Prefeitos do interior de São Paulo citam também o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), e o deputado Paulo Kobayashi (PSDB-SP) como padrinhos em doações de mercadorias apreendidas. O gabinete de Kobayashi disse ter encaminhado pedidos de pelo menos dez prefeituras paulistas, enquanto Temer afirmou que o trabalho deve ter sido feito por seus assessores.
Durante duas semanas, a Folha tentou ouvir o secretário da Receita sobre o assunto. Sua assessoria de imprensa foi informada sobre o teor da reportagem e, depois de diversos contatos por telefone, disse que ele não daria entrevista.
A doação de mercadorias contrabandeadas a prefeituras (com exceção dos produtos perecíveis, que podem ser dados a prefeitos pelos superintendentes regionais) é prerrogativa do secretário da Receita. Só ele pode autorizar a doação de brinquedos, eletrônicos, roupas, carros e outras mercadorias para os municípios.
Não existem critérios para a seleção das prefeituras a serem atendidas e, como a Receita não divulga que existe a possibilidade de doação, municípios ricos acabam aquinhoados, enquanto os mais pobres ficam de fora.
Segundo a assessoria de imprensa da Receita Federal, em Brasília, a demanda por doações é maior do que o volume disponível de mercadorias e ""a escolha das prefeituras que são atendidas é decisão do secretário". No entendimento da secretaria, cabe aos prefeitos a iniciativa de pedir a doação e ela, se tiver mercadoria disponível, atende às solicitações.
Em maio do ano passado, quando era só deputado federal pelo PSDB-SP, Aloysio Nunes Ferreira apadrinhou o pedido da Prefeitura de Buritama, cidade de 17 mil habitantes (10 mil são eleitores), a 550km da capital paulista.
O prefeito de Buritama, Messias Ferreira Neves, também do PSDB, afirmou que o ministro é seu amigo de infância e que, por isso, se ofereceu para levar o pedido de doação de mercadorias a Maciel.
A interferência política surtiu efeito. Os documentos na Receita em São Paulo mostram que Aloysio Nunes Ferreira assinou o pedido no dia 20 de maio de 98. A autorização foi dada por Maciel dois meses e meio depois, em agosto e, desde então, o prefeito recebeu duas levas de mercadorias.
O primeiro carregamento, com sombrinhas, bonecas e pequenos objetos, coube em uma van e foi distribuído à população carente. A segunda leva, ""bem maior", segundo o prefeito, chegou há dois meses, com produtos eletrônicos, brinquedos e 20 televisores.
Os produtos serão vendidos em barraquinhas na festa de aniversário da cidade, depois de amanhã, dia 24. O prefeito espera arrecadar pelo menos R$ 9.000,00 para obras sociais.
O ministro afirmou, por intermédio de sua assessoria de imprensa, que os donativos se destinavam ao ""Projeto Esperança" para tirar as crianças pobres das ruas, em Buritama. ""É um projeto de distribuição de justiça social e meu pedido não tem nenhuma ilegalidade", afirmou.
Uberlândia, no Triângulo Mineiro, obteve de Everardo Maciel 20 aparelhos de som, 36 televisores, 50 impressoras, 100 mesas para computador, 32 mil lancheiras escolares, 10 mil toalhas de banho, duas motocicletas, 4,5 toneladas de tecido poliéster, 431 carrinhos para bebês, 14.400 pares de sapatos chineses, 8.830 pares de tênis, 30 mil camisas masculinas, 32.208 utensílios de cozinha, 15.594 calças masculinas, 4.080 tigelas, 3.936 bandejas e outros itens.
Gerson Abrão, assessor do prefeito Virgílio Galassi (PPB), confirma o apadrinhamento de Odelmo Leão, que deve disputar a prefeitura de Uberlândia em 2000.
O jornal ""O Município", órgão oficial da prefeitura de Uberlândia, publicou, na primeira página da edição do dia 22 de junho, a foto de Odelmo Leão distribuindo 5.000 pares de tênis. Com base na publicação, o vereador Geraldo Rezende Júnior (PMDB) entrou com pedido de investigação de uso eleitoreiro dos donativos da Receita na Promotoria do município. O promotor, Fernando Martins, disse à Folha que prepara ação de improbidade administrativa contra o prefeito.

Faixas
Em Monte Carmelo, também no Triângulo Mineiro, o deputado participou da distribuição de 8.000 agasalhos doados pela Receita. Faixas de agradecimento, confeccionadas pela prefeitura, ainda estão na fachada da escola pública municipal Centro Educacional Infantil, onde parte das roupas foi distribuída. Na faixa, está escrito: ""Os moradores agradecem ao prefeito dr. Saulo (Saulo Faleiro, PSDB) e ao deputado Odelmo pelos agasalhos".
O deputado afirmou que só orienta os prefeitos sobre como proceder para conseguirem as doações na Receita e que todo o trâmite para recebimento do material fica a cargo da prefeitura.
Odelmo Leão disse que a acusação de uso eleitoreiro ""é coisa de um vereador da oposição que não tem nada para fazer", mas confirma que participou da distribuição dos produtos e diz não ver problemas nisso. ""A Câmara de Uberlândia autorizou o prefeito a entregar as mercadorias doadas pela Receita à população carente e eu sou um homem público", disse.
Jorge Maluly Neto (PFL-SP) é o deputado federal que mais apadrinhou doações da Receita a prefeituras. De janeiro do ano passado a junho deste ano (período pesquisado pela Folha nos arquivos da Superintendência em São Paulo), Everardo Maciel atendeu pedidos dele para as seguintes cidades do interior de São Paulo: Sebastianópolis, Mirassol, Terra Roxa, Novo Castilho, Getulina, General Salgado, Floreal, Ferraz de Vasconcelos, Coroados, Bocaina, Bilac, Magda, e Nhandeara.
Sebastianópolis (503 km da cidade de São Paulo) tem 2.227 habitantes e recebeu 20 mil carrinhos de brinquedo e 4.000 bonecas Barbie, que estão guardados desde maio para serem distribuídos no Dia das Crianças e Natal.
""São tantos brinquedos, que lotamos uma sala", afirmou o assessor do prefeito Edivaldo Borges. Ele diz que foi um cabo eleitoral do deputado de Nhandeara que aconselhou a prefeitura a pedir ajuda ao deputado. ""Não sabíamos que existia esse caminho. Os deputados é que têm o canal."
Maluly Neto confirma sua atuação junto à Receita e diz que todos os deputados federais do interior de São Paulo fazem trabalho semelhante. Segundo ele, como a Receita não divulga a possibilidade de doação para as prefeituras, eles acabam ""fazendo a ponte" .
O deputado diz que não comparece para a distribuição das mercadorias nos municípios -""seria uma hipocrisia", afirma- e critica a forma de agir da Receita: ""Ela deveria ter um critério, uma forma mais justa de distribuir os produtos, porque todos têm direito igual. Estou falando contra mim, porque peço muito".
Os prefeitos de Coroados, José Paulo Beltrão (PFL), e de Dirce Reis, Euclides Benini (PPB), citaram Michel Temer (PMDB-SP) como padrinho para conseguir doações da Receita. Ambos disseram que Temer os acompanhou em visitas à Superintendência da Receita em São Paulo, mas que não aparece publicamente para a distribuição das mercadorias.
Dirce Reis, que está entre as mais carentes de São Paulo, recebeu um aparelho de som, 360 garrafas térmicas e 4.750 brinquedos, que ainda serão distribuídos entre as 750 crianças da cidade.
Embora seja filiado ao PPB, o prefeito diz que chegou a Michel Temer porque o PMDB fez coligação com seu partido na última eleição. Mesmo não comparecendo à distribuição dos produtos na cidade, o deputado terá seu nome associado aos presentes. ""A gente fala que foi o deputado tal que ajudou. É uma divulgação apenas no boca a boca", declarou.
Temer disse que nunca acompanhou prefeitos a órgãos públicos, "nem mesmo a gabinetes de ministros". Mas ele admite que é possível que sua assessoria tenha encaminhado os pedidos dos prefeitos para a Receita. "Se meus assessores ajudaram, fizeram muito bem, porque os dois municípios estão entre os mais pobres do Estado de São Paulo", afirmou.
O deputado Paulo Kobayashi foi citado pelo gabinete do prefeito de Getulina (460 km de São Paulo), Fumio Izuê (PTB), embora conste nos arquivos da Receita Federal um ofício de Maluly Neto com pedidos para a cidade.
Kazuho Sano, chefe de gabinete de Kobayashi, afirmou que, de um mês para cá, o deputado começou a receber pedidos de prefeitos para ajudá-los a obter doações da Receita. ""Foram uns dez pedidos até agora. O reforço do deputado mostra que a prefeitura não está desamparada e endossamos o pedido independente de o prefeito ser nosso aliado ou não."


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