São Paulo, segunda, 23 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª
Termo "mulher honesta" deve sair do Código Penal

RENATA GIRALDI
da Sucursal de Brasília

As mudanças no Código Penal deverão atualizá-lo, para que expressões como "mulher honesta" deixem de existir. O atual é de 1940. As modificações estão sendo propostas por uma comissão formada pelo Ministério da Justiça.
Houve duas reuniões. As próximas serão nesta semana, quando será discutido se o assédio sexual será considerado crime.
Para o professor de direito penal Ney Moura Teles, 42, um dos sete membros da comissão, o assédio é crime. Em sua opinião, se virar lei, o nível da paquera melhorará.
A comissão trabalha para entregar as propostas de mudança no código em 16 de março. O resultado final será encaminhado pelo ministro Iris Rezende ao presidente Fernando Henrique Cardoso.
A comissão propôs na semana passada a legalização do aborto em casos de deformações graves e irreversíveis do feto.
Leia a seguir os principais trechos de entrevista concedida por Moura Teles à Folha:

Folha - O que faz o Código Penal ser ultrapassado?
Ney Moura Teles -
De 1940 para cá, muita coisa mudou. O desenvolvimento tecnológico é imenso. Os costumes se modificaram, e a moral tem novas interpretações.
Folha - Dê um exemplo de conceito que ficou defasado.
Teles -
A comissão vai discutir, por exemplo, o fim da expressão "mulher honesta", que é utilizada em vários artigos do código. Ela se refere à mulher virgem ou que tem relações sexuais apenas com o marido ou parceiro. Do jeito que está, uma mulher viúva que mantenha relações com um homem não deve ser considerada "honesta".
O conceito de adultério deverá cair. Hoje, ninguém leva o assunto para a Justiça Penal. Um problema dessa ordem deve ser resolvido na Justiça Civil, sem alardes.

"O conceito de adultério deverá cair. O problema deve ser resolvido sem alardes"


Já a violência presumida é a que se refere à relação sexual ou atos libidinosos com menores de 14 anos, em que a vítima é tratada como se tivesse sido estuprada. Vou propor a proibição de relações sexuais com menores de 14 anos, com possibilidade de punição.
É importante esclarecer que relação sexual com menores de 14 anos não é estupro, como trata o atual Código Penal. Hoje, essas crianças e adolescentes têm uma consciência sobre vida sexual que não existia nos anos 40.
Folha - A proposta de legalizar o aborto nos casos em que o feto tem deformações físicas ou mentais está provocando polêmica. Os srs. não podem estar propondo um atentado?
Teles -
Nossa preocupação é defender o direito à vida de forma digna. Ou seja, que a mulher dê à luz crianças saudáveis e com chances iguais de disputar espaços na sociedade.
Deformações físicas ou mentais, no caso, serão razões para autorizar o aborto apenas se forem consideradas graves e irreversíveis.
Uma junta médica, de no mínimo dois profissionais, deverá atestar se o feto sofre de deformações graves e irreversíveis. Só depois disso o caso será levado à Justiça.
O aborto será realizado apenas se a mulher quiser.
Folha - Na comissão, apenas o sr. foi contra a necessidade de o marido ou companheiro opinar sobre o aborto. Por que essa posição?
Teles -
Acredito que a decisão de dar à luz é personalíssima, só da mulher. O homem, companheiro ou marido, deve apenas apoiar a decisão que ela tomar.
Mas a comissão definiu que a opinião do homem seja considerada, se bem justificada. Caso seja contra o aborto, a operação não será realizada. As mães solteiras poderão optar pelo aborto sem necessidade de apresentar a posição do pai da criança.
Folha - As mães que usaram o medicamento talidomida (que pode causar deformações no feto) ou aquelas que sabem que seus filhos serão portadores da síndrome de Down, por exemplo, podem ter os fetos classificados como portadores de deformações graves e irreversíveis?
Teles -
Na minha opinião, jamais. A vítima da talidomida, que tem malformação de um membro do corpo, não pode ser considerada como portadora de um problema grave. É irreversível sim, mas não grave.
Já os fetos com síndrome de Down não podem ser considerados com deformações graves porque conseguem ser úteis e ter uma vida normal na sociedade.
Folha - Outro tema polêmico é a eutanásia e a ortotanásia. A primeira será considerada crime. A segunda será permitida.


"É importante esclarecer que relação sexual com menores de 14 anos não é estupro"
Teles -
Eutanásia é matar por piedade. O código hoje é omisso em relação à eutanásia, mas o assunto será tratado como crime. A punição poderá ser a reclusão de 4 a 10 anos.
A ortotanásia, autorizada pela comissão, permite o desligamento dos aparelhos ou a interrupção do tratamento, sob a alegação de que o paciente deve ter seu sofrimento evitado. Ele não tem chances de sobrevivência.
A avaliação é que o responsável pela ortotanásia foi motivado pela pena. O caso será tratado como crime de compaixão. Mas há vários quesitos que terão de ser respeitados.
Folha - O sr. não teme os riscos a que os pacientes podem ser expostos com a permissão da ortotanásia?
Teles -
Tenho muito medo. Fui contra a aprovação da medida, mas meu voto foi vencido. Confio, no entanto, nas exigências -vítima maior de 18 anos, capaz e com sofrimento físico insuportável.
A lei exigirá ainda que uma junta médica ateste que a vítima não terá chances de sobrevida e que houve consentimento de um responsável para a prática da ortotanásia.
Folha - Nesta semana, a comissão vai discutir se assédio sexual deve ser tratado como crime. Qual é a tendência?
Teles -
Eu, pessoalmente, sou favorável a que o assédio sexual seja tratado como crime. É importante punir quem desrespeita, pressiona ou constrange para obter favorecimentos íntimos.
Proponho dois tratamentos diferentes para o assunto, com penas que variam de um mês a um ano. Depende da gravidade da pressão exercida pelo acusado.
O tratamento deve ser igual para homens e mulheres.
Folha - Isso não fará com que qualquer cantada venha a ser interpretada como assédio?
Teles -
De forma nenhuma. Acredito que vai acontecer justamente o contrário. As pessoas passarão a ser mais românticas, educadas e gentis nos tratamentos. A cautela vai criar uma nova postura nas paqueras.
Folha - E se uma pessoa inventar que foi vítima de assédio sexual?
Teles -
Será acusada por denunciação caluniosa, crime que já existe no Código Penal. A denunciação pode dar prisão de 2 a 8 anos. Essa punição é maior do que a estabelecida para o crime de assédio sexual.
Folha - Outro assunto que a sociedade discute é o fato de menores de 18 anos não responderem por eventuais crimes. A idade pode ser diminuída para 16 anos?
Teles -
Não. O assunto não será discutido pela comissão. Em geral, os estudiosos do direito são contrários à diminuição da idade mínima para crimes penais.
Diminuir a idade iria causar mais problemas, porque faltam vagas nas penitenciárias.
Folha - A comissão discutirá também a questão das penas alternativas. Quem deve ser beneficiado?
Teles -
O assunto ainda será discutido. O uso das punições alternativas, no lugar da prisão, contribuirá para melhorar a sociedade. Ela se beneficiará com os serviços prestados aos setores mais necessitados.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.