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LANTERNA NA POPA
A burguesia do Estado
ROBERTO CAMPOS
O Brasil é particularmente sujeito a ilusões irresistíveis. Citemos algumas. A primeira é a que
se pode melhorar o padrão de vida pela decretação do salário
mínimo. A questão é que, se ele
for realista, o mercado o praticará independentemente de lei.
Se sobreestimado, será anulado
pela inflação ou pelo desemprego, ou podado na economia informal. A segunda é atribuir importância "estratégica" ao monopólio estatal do petróleo. Mas
como nenhum dos países ricos (e
militarmente fortes) do G7 tem
monopólios estatais, segue-se
que estes são desnecessários
quer para a riqueza quer para a
segurança. Trata-se de cacoete
de país subdesenvolvido. A terceira é que o Brasil tem empresas "públicas" que visam a maximizar o bem-estar da nação,
sem o egoísmo das empresas privadas. A verdade é que a empresa pública brasileira é um mito.
Ela só seria "pública" se o povo
tivesse participação significativa em sua gestão ou se trouxesse
ao Tesouro Nacional apetitosos
dividendos para financiar o social. Nada disso acontece. As estatais são reservas de caça de
políticos e tecnocratas, que formam uma nova classe: a "burguesia do Estado".
No Brasil, mesmo as chamadas "jóias da coroa" já foram de
há muito privatizadas pelos seus
funcionários, que se apropriaram do grosso dos recursos, deixando apenas migalhas para o
Tesouro. É o que transparece do
quadro abaixo:
Como se pode verificar, as contribuições da Petrossauro para o
seu fundo de pensões, na média
do quadriênio 1995/1998, foram
4,7% maiores que os dividendos
pagos ao Tesouro. Este pobretão, que representa 163 milhões
de brasileiros, auferiu a "excitante" rentabilidade média de
1,4% ao ano! É como se a viúva
fosse explorada por um gigolô! O
Banco do Brasil é ainda pior. As
contribuições para os funcionários são 6,95 vezes o rendimento
do Tesouro, e a rentabilidade
média do capital empatado foi
de 1,03% ao ano. No caso da Eletrossauro, a situação é "aparentemente" menos chocante. A
rentabilidade média anual para
o Tesouro foi de 4,67%, e as contribuições para os fundos de
pensão não alcançaram a quarta parte dos dividendos do erário. Aparentemente, porque
existe um enorme passivo previdenciário não provisionado correntemente. O déficit atuarial
dos fundos de pensão (excesso
de benefício sobre receitas realizáveis) é estimado em R$ 1,2 bilhão, no caso de Furnas; R$ 300
milhões na Chesf e R$ 200 milhões na Eletronorte.
Essa responsabilidade atuarial terá que ser de alguma forma absorvida no caso da privatização, podendo traduzir-se
numa substancial redução do
preço de venda. Note-se que a
Petrossauro já reconheceu uma
dívida de R$ 5.991.700 para com
a Petros, a ser provisionada em
parcelas anuais. Esses "passivos
previdenciários" são um dos
grandes obstáculos à privatização dessas empresas e explicam
também sua feroz resistência ao
programa de desestatização e
sua engenhosidade na exploração da indústria das "liminares
judiciais".
Nos países da antiga órbita soviética, a burocracia partidária
-a "nomenklatura"- formou
uma "nova classe" causticamente descrita pelo dissidente
iugoslavo Milovan Djilas, a qual
recebia recompensas não à base
da eficiência produtiva e sim da
fidelidade aos dogmas marxistas. Nos países da América Latina, onde as burocracias estatais
cresceram desmesuradamente,
na época em que se acreditava
no planejamento central e no dirigismo desenvolvimentista,
surgiu também uma nova classe, a dos "burgueses do Estado".
Os contribuintes, cujos impostos
financiam as estatais, passaram
a ser os novos "proletários".
A liderança dessa burguesia é
exercida no Brasil pela CUT,
que é cada vez menos um sindicato de operários e cada vez
mais um sindicato de funcionários. Essa corporação sindical,
cujo braço político é o PT, tem
sido inquestionavelmente eficiente na defesa desses burgueses, aduzindo imaginosamente
toda a sorte de argumentos contra a desestatização: soberania
ou segurança nacional, missão
social, patriotismo, filantropia,
desenvolvimentismo... "et caterva". O único argumento ponderável é o receio de substituição
de monopólios públicos por monopólios privados. Claramente,
o ideal é um regime competitivo,
como o que se está estabelecendo nas telecomunicações e no setor de geração de energia elétrica. Mas é importante notar que
o monopólio privado é muito
menos nocivo que o monopólio
público, simplesmente porque é
muito mais "contestável": as
concessões podem ser fiscalizadas ou canceladas pelas autoridades regulatórias, as empresas
podem ser processadas por perdas e danos e correm o risco da
falência, e a reclamação popular
é muito mais eficaz porque as
empresas não podem se abrigar
sob o manto da intocabilidade
patriótica, como o fazia a Petrossauro.
A crua realidade é que não faz
o menor sentido para o governo
continuar cativo dessa burguesia. Há um enorme déficit fiscal,
que tem de ser financiado pela
rolagem da dívida a juros altos,
que oprimem o setor privado e
os consumidores. A reforma da
estrutura fiscal, ainda em gestação, deveria conter o "fluxo" da
dívida, mas precisa ser completada pela privatização, cuja receita deveria ser aplicada na redução do "estoque" da dívida
pública. Que o alívio pode ser
expressivo, prova-o uma aritmética grosseira. Mesmo se as
ações de controle do Tesouro na
Petrossauro fossem vendidas pelo valor contábil, sem ágio, aplicando a receita no cancelamento de dívidas, as economias para
o Tesouro (ao custo atual de rolagem de 23,5% ao ano) seriam
de 17 vezes os dividendos médios
recebidos no último quadriênio.
No caso do Banco do Brasil seriam de 23 vezes, e no da Eletrossauro, 5,03 vezes (exclusive
o passivo previdenciário).
Manter estatais com baixíssima rentabilidade, enquanto o
setor privado é sangrado por impostos e juros altos, não é um
comportamento racional. É
uma aberração freudiana, vizinha do masoquismo. E explica
por que nossos estatólatras desenvolvimentistas não entendem nada de desenvolvimento.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal
pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna
na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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