São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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JANIO DE FREITAS
Um país perigoso

Em separado, os dois grupos de números já são revoltantes. Combinados, tornam-se desses que insinuam a idéia de que, por bem, no Brasil nada se consertará. A afirmação é temerária, sim. Porque parte de uma realidade que ninguém quer reconhecer: o Brasil é um país perigoso. Todos os seus ingredientes são explosivos. E provocativos. Cada vez mais explosivos e a cada dia mais provocativos.
Os dois grupos de números que emergiram na semana sintetizam muito desse país perigoso. O primeiro deles foi fornecido pelo secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. O resumo não prejudica a eloquência do que resulta da relação entre "ordem econômica" e governo (não só o atual, embora este mais do que os outros) contra o país e contra sua população:
- Está calculado em R$ 825 bilhões o volume de dinheiro que circula por ano na economia brasileira sem pagar imposto -por sonegação, brechas mantidas na legislação e favorecimentos do governo a certas atividades, como a especulação financeira de fundos estrangeiros agraciada com isenção pelo governo atual; 50% das 530 maiores empresas industriais ou comerciais não pagaram nem um real de Imposto de Renda; 42% das maiores empresas financeiras não pagaram nem um centavo de Imposto de Renda no ano passado.
Três dias antes, excelente reportagem de Célia de Gouvêa Franco, na Folha, além de antecipar algumas das citações de Everardo Maciel, demonstrava a continuidade da monstruosa deformação que constitui um crime social de fato: a massa maior de Imposto de Renda recolhido não é paga pela soma das empresas, mas pelos assalariados. Do total de IR no ano, o conjunto das empresas contribui com 40% do montante recolhido, ou R$ 11,96 bilhões. E pensar que só o maior dos bancos privados lucrou, no ano passado, mais de R$ 1 bilhão, seguido de perto por vários. Ou que só nos três primeiros meses deste ano os bancos já lucraram R$ 2 bilhões.
Em contraposição aos 40%, ou R$ 11,96 bilhões, pagos pelo conjunto de todas as empresas, o Imposto de Renda recolhido dos assalariados responde por 48% do total, com R$ 14,65 bilhões. Quase 40% mais do que as empresas.
No atual governo, as empresas foram premiadas com redução do percentual de Imposto de Renda a ser pago. O percentual dos assalariados foi aumentado na mesma ocasião e ainda uma segunda vez. O favorecimento às empresas deu-se sob o argumento (é sempre necessária ao menos uma fantasia de argumento) de que a menor alíquota estimularia o recolhimento e deixaria mais recursos para o crescimento da atividade empresarial. Os números da evasão responderam à primeira parte do argumento. À segunda responde a venda de empresas brasileiras ao capital estrangeiro, à maneira das liquidações.
A brutal deformação nas proporções de impostos recolhidos significa, na prática, brutal transferência de dinheiro dos assalariados para os detentores do capital produtivo e do capital especulativo. São os assalariados, com sua maior parte no IR recolhido, que financiam os detentores de capital em toda a atividade custeada pelo governo com o IR.
Um pequeno exercício onírico: que Brasil esplêndido poderia haver hoje, se ao longo dos anos -nem muitos, não, só os mais recentes- impostos devidos sobre R$ 825 bilhões entrassem anualmente nos cofres públicos. Nem toda a corrupção brasileira seria capaz de impedir a construção de um país verdadeiro. Nem crise alguma, nem dependência aos dólares especuladores, nem desemprego, nem miséria, nem cidades desumanas. Nem violência.
Os que controlam, como governantes, políticos ou como poder financeiro, as relações entre os governos e a ""ordem econômica" são partes e beneficiários dos que fazem a evasão desse dinheiro. O Brasil é um país perigoso. De ingredientes explosivos e provocativos.





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