São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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DOMINGUEIRA
Brasil na TV

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

Talvez não exista universo mais impermeável à isenção do que o do futebol. Território de paixões, frustrações, projeções, o velho "esporte bretão" ocupa uma fatia considerável da vida emocional dos brasileiros e de muitos outros povos.
O envolvimento com o futebol é quase sempre um fato da infância. Antecede a maturidade, embora, como tudo, possa vir a se modificar com ela.
O jornalista de futebol, antes de sê-lo, foi quase sempre um torcedor. Vestiu camisa, gritou "é campeão", abanou bandeirinha. Alguns preservam abertamente a preferência clubística, outros a dissimulam, outros, ainda, procuram relegá-la a um passado afetivo, reconstruindo sua relação com o esporte em favor de uma persona isenta, que muitas vezes, de fato, acaba por se impor.
Em qualquer desses casos, o ofício pode ser bem exercido, embora muitos considerem que preferência clubística e bom jornalismo sejam incompatíveis.
Quando trata-se, entretanto, de "torcer pelo Brasil", as coisas tornam-se um pouco mais complicadas. Às vezes completamente ridículas, caso da transmissão da Globo do último jogo entre Palmeiras e a equipe argentina do River Plate pelo torneio Libertadores de América.
O locutor Galvão Bueno é uma instituição nacional-popular versão Globo. Gerações de todas as classes habituaram-se a acompanhar eventos esportivos sob seu comando. Mesmo quem não gosta sabe, ao ouvir sua voz, que alguma coisa "importante" do mundo dos esportes está acontecendo na TV.
A estratégia da emissora é conhecida: o locutor é o chefe de torcida da audiência verde e amarela. Comporta-se ao microfone como um sujeito das arquibancadas, só que com um pouco mais de "conhecimento" da matéria.
Na transmissão do jogo Palmeiras e River Plate, a idéia era transformar o Palmeiras, como insistia Bueno, "no Brasil na Libertadores".
Feita a indigesta mágica, passou ele a narrar a partida como se fosse uma guerra entre Brasil e Argentina, com todos os preconceitos e sentimentos sórdidos envolvidos, ficando a informação e a isenção suspensas por lei marcial. Algumas pérolas da transmissão:
"É claro que estamos todos torcendo pelo Palmeiras, mas a barreira não estava a 9m15, como manda a lei" (ao comentar uma cobrança de falta a favor da equipe brasileira).
"O Galhardo pode fazer tudo, porque tudo que encostar nele é falta. Ele é desses jogadores baixinhos e habilidosos que se jogam e simulam pênaltis" (sobre o craque argentino, que faz o que qualquer "baixinho habilidoso", como o brasileiro Romário, por exemplo, faz -no caso, despertando elogios do tipo "experiente e malicioso").
"Eles sempre entram com a pose de reis do universo, mas quando o resultado não vem, começam a bater" (sobre os argentinos).
E por aí foi. Como simples interessado em ver uma boa partida de futebol fiquei pasmo. Imagino o que um cidadão argentino, residente no Brasil, deve ter sentido.


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