São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


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NO PLANALTO
Uma defesa de FHC

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente da República também é cul... Não, não. Interrompa-se a frase. É cedo para deitá-la sobre o papel. Melhor começar de outra maneira, com um aviso: quem não gosta de FHC que abandone já o texto.
O plano é entregar ao leitor o peixe vendido no título: uma peça de defesa. Assim, os que desejarem algo diferente que se sirvam do restante do jornal. Aqui, FHC será defendido às últimas consequências. Ainda que, para isso, seja preciso atacá-lo.
Anote-se de saída o seguinte: FHC não é o tolo que FHC tenta fazer crer. Ele tampouco é o personagem alheado que seus ministros e amigos alardeiam.
O sociólogo alemão Max Weber, autor da predileção de FHC, dizia que "a vontade do povo é uma ilusão infantil". Pois estão destruindo o que talvez seja a última ilusão do brasileiro: a de que o presidente preside.
Reincidentes, os eleitores de FHC esperavam muito dele. Supunham, por exemplo, que fosse modificar hábitos e costumes. Jamais imaginariam que, de escândalo em escândalo, o cavalheiro da nova ordem fosse sofrer tamanha mutação. Não se sabe que cara terá FHC ao final do processo de metamorfose. Mas sua atual fisionomia já é desalentadora.
O presidente exibe a face de um tonto. A pretexto de proteger-se, diz que nada viu nem ouviu. Lava as mãos: "Se houver uma questão, ela é individual", não um caso de governo. Investigação? Ah, isso é lá com o Congresso.
FHC ainda não se deu conta, mas está destruindo a imagem daquele professor da USP e da Sorbonne, cuja reputação correu o mundo. Resta pouco, aliás, do antigo sociólogo.
Daí a necessidade de que alguém defenda FHC dele próprio e de seus amigos. Retome-se, então, a frase interrompida no primeiro parágrafo: o presidente da República também é culpado.
Mas não se havia prometido um texto em sua defesa? Sim, exatamente. Apontar as culpas de FHC é, no momento, a melhor forma de acudir-lhe a reputação.
FHC deveria convocar, ele próprio, uma entrevista coletiva. Olharia para os repórteres e, fronte erguida, ar solene, diria, antes de qualquer pergunta: "Sou culpado".
Não se está defendendo que assuma erros passíveis de enquadramento no Código Penal. Não. Absolutamente. Reserve-se esse papel para o Ministério Público e para os partidos de oposição. O que se pede é algo mais simples.
Por exemplo: se não quer estender a mão a alguém que o assessorou por arrastados 17 anos, que FHC admita ter errado na escolha. Sim, escolheu mal um assessor. Por que não? Já seria um belo começo. Melhor ainda se reconhecesse que pode ter sido omisso.
Não resolveria a crise atual. Num primeiro momento, poderia até acentuá-la. Mas o presidente ao menos se livraria da maquiagem de bobo que as manifestações oficiais grudam em seu rosto.
Recomenda-se a FHC e a todos os que à sua volta se entregam à tarefa de satanizar a imagem de Eduardo Jorge a leitura de "Biografia do Diabo" (Editora Record), escrito pelo argentino radicado na Espanha Alberto Cousté.
Em determinado trecho, Cousté relata o drama de Martinho Lutero (1483-1546) em suas contendas com o diabo. Eram tantas e tão renhidas que, depois de se casar com Catalina, uma monja, Lutero escreveu: "Ele (Satã) dorme mais colado a mim do que a minha Catalina".
Recorde-se, por oportuno, frase do papa João Paulo 2º acerca do assunto: "Onde estão os santos, está também um outro, que não se apresenta com seu verdadeiro nome. Ele se chama Príncipe deste Mundo, o Demônio".
Brasília, como se sabe, é local apreciado pelo Demo. Tenha ele o nome que tiver. Lúcifer, Sérgio "Cota Federal" Motta, Belzebu, Mendonça "Fitas do BNDES" de Barros, Asmodeu, Chico "Dólar Barato" Lopes, Satã, Eduardo "Lobby" Jorge...
O Maligno é frequentador assíduo dos porões do governo. Eis um lugar a ser evitado pelas almas ingênuas, do tipo que assina documento sem ler. É ali, nos subterrâneos, que pulsa a ilicitocracia, regime dos negócios e oportunidades, do lobby e da esperteza.
Como no caso de Lutero, o Tinhoso brasiliense confunde-se com o santo de plantão, em cuja nuca libera o seu hálito carregado. O Beiçudo age como se tivesse delegação do presidente.
Ele manda vir os R$ 200 mil, "via Amazonino", para compor a "cota federal" da emenda da reeleição. Ele comercializa estatais "no limite da irresponsabilidade". Ele vende dólares a preço de banana. Ele injeta o interesse privado na arena pública.
A Brasília do tucanato reclama a presença de um exorcista tarimbado. Se não deseja confundir-se com o Príncipe do Mal, convém que FHC abandone logo o papel de jardineiro inocente em meio às flores conspurcadas.
O verbete da enciclopédia já está comprometido. A essa altura, o governo já assegurou o título de omisso. É possível que a história ainda o promova a conivente, cúmplice.
Mas há tempo para evitar que a pecha de apalermado grude à sigla FHC. Não cola mais, de resto, a pregação de que as crises decorrem da ação de auxiliares sem escrúpulos, dos quais FHC prefere se abster. A biografia do presidente -ou o que resta dela- merece mais respeito. Seus eleitores também.
Fernando Henrique Cardoso deveria considerar a hipótese de sair em defesa de Fernando Henrique Cardoso. Do contrário, vai acabar virando o inocente mais culpado de toda a história. Ou o culpado mais inocente, tanto faz.
E seu governo se firmará -que Manuel Bandeira nos perdoe- como uma espécie de Pasárgada tucana. Uma terra em que a amizade com o rei proporciona mais do que a mulher desejada, no leito escolhido. Ah, mais. Muito mais.


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