São Paulo, Segunda-feira, 24 de Janeiro de 2000


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500 ANOS
CE e PE reivindicam ser o lugar onde, três meses antes de Cabral, espanhol desembarcou no Brasil
Descobrimento vira disputa no Nordeste

KAMILA FERNANDES
da Agência Folha, em Fortaleza

FÁBIO GUIBU
da Agência Folha, em Recife

Quinhentos anos depois do Descobrimento do Brasil, Pernambuco e Ceará disputam o reconhecimento como o local do país onde os europeus teriam pisado pela primeira vez.
Registros e evidências tidos hoje como incontestáveis pela maioria dos historiadores indicam que, cerca de três meses antes de Pedro Álvares Cabral, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón chegou ao litoral nordestino.
Em 26 de janeiro de 1500, o espanhol desembarcou em um local batizado por ele de cabo de Santa Maria de la Consolación. Para uns, trata-se do cabo de Santo Agostinho (PE). Para outros, da ponta de Mucuripe ou da praia de Ponta Grossa, no Ceará.
Pinzón zarpou de Palos, no sul da Espanha, chefiando quatro caravelas, em novembro de 1499, seguindo para o arquipélago de Cabo Verde, no oceano Atlântico. De lá, saiu em 13 de janeiro e enfrentou, durante parte da viagem, forte tempestade. Em apenas 13 dias, um prazo curtíssimo para as condições da época, avistou terra. A historiografia portuguesa tradicional sempre considerou que o espanhol havia aportado a noroeste do cabo Orange, limite extremo do litoral brasileiro, ou seja, no atual território da Guiana Francesa.
Essa hipótese é descartada por historiadores como o almirante Max Justo Guedes, diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da Marinha e autor de um importante estudo sobre a viagem de Pinzón à América do Sul.
"Nos relatos de bordo, que foram preservados, e nos depoimentos dos próprios tripulantes da nau de Pinzón consta que, em determinado ponto da viagem, eles perderam de vista a estrela Polar, o que só acontece quando se cruza a linha do Equador. Nesse caso, seria inevitável desembarcar no litoral brasileiro", afirma Justo Guedes. A linha do Equador passa um pouco ao norte de Belém (PA).
Textos mais antigos, de historiadores brasileiros como Raimundo Girão, Capistrano de Abreu, Adolfo Varnhagen e Pompeu Sobrinho, já afirmavam que os navegadores espanhóis Pinzón e Diego de Lepe chegaram ao Brasil antes de Cabral. O também espanhol Lepe fez um trajeto semelhante ao de Pinzón, algumas semanas depois.
"Eles só não tomaram posse do local porque tinham noção clara de que estavam pisando em terras portuguesas, demarcadas pelo Tratado de Tordesilhas em 1494", disse o professor de história Francisco José Pinheiro, da Universidade Federal do Ceará.
Outra dificuldade encontrada pela tripulação espanhola para deixar colonos em território brasileiro foi a hostilidade dos nativos (provavelmente potiguares). Aconteceram confrontos, com várias mortes. Pinzón acabou capturando índios e levando-os para a Espanha como escravos.
À medida que se aproximam os 500 anos do desembarque de Pinzón, cresce a polêmica sobre qual foi o local exato da chegada do espanhol.
A evidência histórica mais forte de que Pinzón teria chegado ao Ceará foi um mapa feito em outubro de 1500 pelo navegador e cartógrafo espanhol Juan de la Cosa.
Ele não esteve na viagem de Pinzón, mas seu mapa (veja quadro abaixo) traz contornos que demonstram conhecimento do litoral nordestino, particularmente do cearense. As evidências mostram que La Cosa obteve relatos das viagens de Pinzón e Lepe.
Pompeu Sobrinho descreve em seu livro "Protohistória Cearense" que La Cosa, "o mestre de cartas de marear", teria encontrado Lepe em Cuba, em abril de 1500, e Pinzón em Sevilha (Espanha), no início de outubro, pouco antes de concluir o mapa.
Para mostrar o local aproximado onde Pinzón teria aportado, o almirante Justo Guedes sobrepôs o mapa de La Cosa ao atual mapa brasileiro, comparando o desenho do litoral. Na comparação, destaca-se a ponta do Mucuripe, onde hoje fica hoje o porto de Fortaleza (CE).
"Pelas anotações do próprio Pinzón, que narram, objetivamente, as condições da correnteza, do vento e o desenho do litoral, e pelo mapa fica descartada a hipótese de que ele tenha chegado no cabo de Santo Agostinho", declara Justo Guedes.
Mas, entre os que defendem a tese da chegada no Ceará, há controvérsias sobre o local: ponta do Mucuripe ou a praia de Ponta Grossa, em Icapuí (230 km a sudeste de Fortaleza), quase na divisa com o Rio Grande do Norte?
Em defesa da praia de Ponta Grossa, Pompeu Sobrinho relatou, com apoio no trabalho do cearense Raimundo Girão, que as anotações de Pinzón descrevem uma duna com cerca de 100 metros de altura (possivelmente a ponta de Iguape, 26 km a leste de Fortaleza), seguida de um trecho de costa uniforme a leste, que termina em uma ponta ou saliência.
No mapa de La Cosa, ao lado dessa ponta, está escrito "Cº de Stmª", o que, na interpretação de Pompeu Sobrinho, significa a abreviação de "Cabo de Santa Maria de la Consolación" (local de chegada de Pinzón). Segundo o historiador, essas indicações coincidem exatamente com a praia de Ponta Grossa.

Campanha
O município de Cabo de Santo Agostinho está em campanha aberta, colecionando evidências históricas de que Pinzón desembarcou ali.
Historiadores buscam apoio para a tese nos registros contidos no chamado "Arquivo de Índias", instalado em Sevilha. Entre os documentos do arquivo, está um relato de Pinzón sobre a viagem, feito 13 anos depois.
Segundo a professora de história ibérica Bartira Ferraz, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Pinzón descreve o local onde aportou e cita, entre outras particularidades, os arrecifes de corais que encontrou.
Esse tipo de barreira natural é comum no litoral nordestino da Bahia até o Rio Grande do Norte. "No Ceará, entretanto, os arrecifes não existem", disse Ferraz.
No mesmo documento, Pinzón diz que o local do desembarque correspondia à latitude de oito graus ao sul do Equador (aproximadamente onde fica Recife). O cabo de Santo Agostinho fica a cerca de 40 km ao sul de Recife.
Bartira Ferraz afirma que, após a morte de Pinzón, o relatório foi usado por seu filho em um processo movido contra a Corte espanhola, reivindicando terras.
É justamente o fato de estar relacionado a uma disputa pela posse de terras que faz com que historiadores tenham restrições a esse relato tardio de Pinzón.
Apesar de os espanhóis terem chegado antes de Cabral ao Brasil, é indiscutível a importância histórica do "descobrimento" do país em 22 de abril de 1500, em Porto Seguro (BA), pelos portugueses, na opinião do professor Pinheiro.
"A principal questão foi a conquista. Os espanhóis encontraram o território, mas não puderam tomar posse por causa do Tratado de Tordesilhas. A chegada dos portugueses não foi, portanto, simplesmente o descobrimento, mas a conquista das terras que já haviam sido demarcadas seis anos antes", disse.


Colaboraram Paulo Mota e Paulo Zocchi, da Agência Folha

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