São Paulo, Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 1999
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ELIO GASPARI

Gastamos, quem, Grande Chefe? Gastaste

A mensagem que FHH enviou ao Congresso no início desta semana é um documento alarmante. De duas, uma: ou o presidente vive em outro mundo, ou há razões para supor que esteja caminhando para transformar em crise política a ruína econômica que fabricou por gestão temerária, populismo cambial e apostas banais.
Parece exagero ver uma coisa dessas num texto em que há 12 elogios à atuação do Congresso e um ao "comedimento" da oposição. O que o torna alarmante são duas questões, uma de fundo e outra de superfície.
A questão de fundo é simples. FFH informou que as dificuldades financeiras não resultaram "basicamente" do "desequilíbrio externo", mas "desequilíbrio persistente das nossas contas públicas".
O populismo cambial produziu quatro anos sucessivos de déficits comerciais. ("O cachorro-quente da Disney é melhor." "Comprei este sapato em Nova York por R$ 20." "Desde que meu gato começou a comer Science Diet parou de deixar pêlos no sofá.") Entre o que vendeu e o que comprou, a economia brasileira ficou devendo US$ 26 bilhões de dólares. Não houve um só ano no qual a ekipekonômica tivesse deixado de fazer previsões róseas no início do ano, revendo-as no segundo semestre.
Ouça-se o ministro Malan em março de 1995: "Estou seguro de que terminaremos o ano com expressivos superávits na balança comercial".
Em abril, aceitava "pequeno superávit".
Em julho, informou que o buraco de dezembro não teria importância, pois a relevância estava na "tendência".
Por falar em tendência, o déficit de 1995 foi de US$ 3,4 bilhões, passou a US$ 5,5 bilhões, no ano seguinte, e a US$ 8,4 bilhões em 1997. Tomou jeito no ano passado, quando a economia já estava arruinada. Mesmo assim, ficou em US$ 6 bilhões, quase o dobro da "tendência" de 95.
Como diria o tucanato: "Compramos mais do que produzimos". Como sucede com as astúcias populistas, o governo praticava uma política enquanto desmentia seus efeitos.
Citando seu autor predileto (Fernando Henrique Cardoso), o presidente lembrou ao país que "gastamos mais do que arrecadamos". Gastamos quem, Grande Chefe Branco? Gastais. Vá o leitor para uma fila de ônibus e pergunte ao distinto público quem é que gasta o dinheiro da Viúva. É a turma que só viaja de ônibus da sala de embarque ao avião.
Não só é o governo quem gasta, mas foi o governo de FHH quem gerou o déficit que, segundo ele (erradamente), arruinou o país. Ao fim do governo Itamar Franco, graças à atuação do ministro Fernando Henrique Cardoso, FFH recebeu um país com as contas públicas em ordem. Seja qual for o ponto de observação, o déficit público foi obra sua.
Quando o presidente atribui a crise econômica ao déficit público, procura diluir no Congresso a sua responsabilidade. Isso porque se pode acusar os senadores e deputados de tudo, menos de terem sido responsáveis pelo populismo cambial. Mais: ao fazer isso procura manter encurralado um Parlamento que lhe deu o que quis, inclusive 15 emendas constitucionais. (Emendas a uma Constituição que o senador Cardoso ajudou a fazer.)
É injusto assegurar que o gosto pela transformação da crise econômica em crise política seja uma premeditação. É muito provável que ele derive de uma vontade de transferir responsabilidades. É difícil saber qual dos dois comportamentos traz maiores riscos.
Dotado de enorme capacidade para reiterar seu acertos (gastou algo como a décima parte do texto da mensagem citando a própria clarividência) FFH tem uma dificuldade, recente e incompreensível, para admitir seus erros.
Há um exemplo, de alarmante e astuciosa superficialidade:
A certa altura da mensagem, atribuiu o aumento da desconfiança da banca à "percepção de que haveria atraso na tramitação de outro projeto fundamental para o ajuste, da prorrogação e aumento da alíquota da CPMF".
Essa é forte. Projeto só se atrasa na tramitação quando está no Congresso. Pois a CPMF não atrasou um só dia no Senado nem vai atrasar na Câmara. Repetindo: um só dia. Esse imposto só será arrecadado em julho porque o Executivo atrasou-se na remessa do projeto de emenda constitucional ao Congresso. Esse é o único motivo da perda de R$ 22 milhões por dia, desde 24 de janeiro. FHH, bem como os ministros Clóvis Carvalho e Pedro Malan, sabe muito bem que essa lambança foi obra exclusiva do Executivo. Sabe também por quê, mas deixa pra lá. Não é justo que se faça a choldra de boba, e o Congresso, de saco de pancada.
A mensagem de FFH foi um documento de dependência reversa. Primeiro procurou passar para a política uma crise de má gerência econômica.
Depois, transferiu à humanidade uma sentença severa que ela não fez, mas que ele endossa. Tratando do colapso do populismo monetarista, disse assim:
"Em suma, o mundo não nos dava mais tempo para o gradualismo, nem na política fiscal, nem na cambial".
O mundo não. A banca.


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