São Paulo, segunda, 24 de março de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÃOS SUJAS
Folha entrevista porta-voz de suposto chefe da N'drangheta, que teria negociado com Paulo César Farias
Estado inventou máfia, dizem os Morabito

HUMBERTO SACCOMANDI
LUCAS FIGUEIREDO
enviados especiais a Locri


Nos documentos da Justiça italiana sobre o esquema de narcotráfico que envolve Paulo César Farias destaca-se o nome de Giuseppe Morabito, 62. Ele é considerado pela polícia italiana como o chefão da N'drangheta, a máfia calabresa, que controlaria a maior parte do tráfico de cocaína para a Europa.
A Folha esteve na Calábria e encontrou o porta-voz da família dos Morabito, Rocco Carrozza, genro de Giuseppe. Carrozza, 47, se define como um pequeno empresário, casado com Francesca Morabito e pai de quatro filhos. Para a polícia, ele é filiado ao clã dos Morabito.
Esse contraste com o Estado marcou a vida de Carrozza. Sobre isso, escreveu dois livros, publicados por ele mesmo, incluindo ``Como se Vira um Mafioso Depois de 22 Anos de Trabalho''.
Em entrevista, ele acusa o Estado de ter inventado a máfia para distrair a opinião pública de problemas mais graves, como a corrupção. ``A máfia serve também para justificar gastos enormes com a burocracia e as forças antimáfia.''
Como ele nega a existência da máfia, nega também ser mafioso. ``Mafioso é quem me acusa de ser da máfia'', disse. Processado por tráfico de droga, extorsão, sequestro e associação mafiosa, Carrozza foi absolvido, mas tem uma disputa judicial pela posse de seus bens.

Folha - O sr. é considerado pela polícia como filiado a um clã da N'drangheta, a máfia da Calábria. O sr. se considera um mafioso?
Carrozza -
Não me considero mafioso e nunca o fui, em nenhum nível. Eu considero mafioso quem me considera mafioso, pois são eles que têm esse poder. Se eu me associei a alguém e cometi algum delito, eles que me digam.
Folha - O sr. foi processado?
Carrozza -
Sim, não só processado, estive preso. Depois fui absolvido e estou livre. Mas vivendo na Calábria corre-se o risco de ser preso mesmo inocente.
Folha - Existe a máfia?
Carrozza -
Faz mais de 50 anos que o governo italiano diz que existe a máfia. E quer que ela continue existindo. Isso é para distrair a opinião pública da corrupção no governo. A única desculpa que ainda cola é a máfia, a N'drangheta. Isso é invenção do governo.
Folha - No seu livro o sr. se apresenta como porta-voz. De quem?
Carrozza -
Houve, no ano passado, uma manifestação em Locri. Muitos familiares e amigos protestavam contra sentenças emitidas num processo. Essas mulheres e crianças precisavam de alguém que fosse porta-voz. Faço isso para ajudar essas pessoas.
Folha - O sr. insinua que a máfia é o Estado?
Carrozza -
Não quis dizer que o Estado é uma máfia. Mas queremos um Estado que tutele todos os cidadãos, e não que nos acuse de ser a máfia, coisa que não existe aliás em nenhum outro Estado europeu. Eu não quero que exista a máfia. Mas, como é o Estado que sempre disse que existia a máfia, ele que declare agora que a máfia acabou. Ou essa máfia não acaba nunca? Basta que o Estado declare: `A máfia acabou'. Quem comete um crime deve ser punido. Se depois tenta se reinserir na sociedade, o Estado que não atrapalhe.
Folha - O que quer dizer para uma pessoa o estigma de mafioso?
Carrozza -
É a destruição da sua família até a sétima geração. É como marcar a ferro os bois, não sai nunca mais: nos marcam como animais. E os que têm esse poder podem destruir quem eles bem entendem.
Folha - Com o sr. e sua família, o que aconteceu?
Carrozza -
Trabalho desde os 10 anos. Éramos uma família numerosa. Fui garçom, ajudante de obras, pedreiro, carpinteiro. Migrei para o norte, pois aqui no sul não havia possibilidades de trabalho. Consegui me tornar um pequeno empresário de construção. Encontrei minha mulher e nos casamos. Foi quando começaram os meus problemas (risos). Criei minha família e consegui progredir um pouco, direito de todo italiano.
Fui então acusado de ser mafioso. Passei 15 anos respondendo a processos. Hoje não há nenhuma acusação contra mim. Fiz ainda cancelar todas as anotações contra mim, para proteger a minha honra e a de meus filhos.
Trabalhei toda a minha vida, para mim e para os meus filhos. Paguei impostos, contribuindo para o Estado. E o que esse Estado me fez passar? Em 1983, foram sequestrados os meus bens, dizendo que eram de meu sogro, Giuseppe Morabito. Em 1987, meus bens foram devolvidos. O Estado admitiu que eram regulares. Em 1993, voltaram a ser sequestrados, novamente com a acusação de ser dinheiro dado pelo meu sogro. Em 1994, foram liberados. Tentaram novamente, estamos respondendo a um apelo. Isso já dura 15 anos. Que devo fazer? Para participar de concorrências públicas, por exemplo, precisamos de um certificado antimáfia. Consegui em Roma, onde morava, mas não em Reggio Calabria, onde fica minha empresa.
Folha - Vocês estão pedindo a abolição dos termos máfia, N'drangheta, Cosa Nostra. Por que?
Carrozza -
Para que acabe. É o Estado que deve dizer que isso acabou, não o cidadão. Se o Estado diz que existe a máfia, quem pode desmenti-lo? Estamos voltando aos tempos da caça às bruxas. Antigamente, quando um duque, um príncipe, precisava de dinheiro, acusava os inimigos de bruxaria e se apropriava de seus bens. É isso que acontece hoje na Itália, quando nos acusam de mafiosos.
Folha - O sr. conhece alguma dessas pessoas que o Estado chama de chefões da máfia?
Carrozza -
Não, não conheço. Claro, conheço meu sogro. Alguns conheço de vista. As cidades aqui são pequenas, todos se conhecem, mas não temos amizade.
O sr. conheceu o empresário brasileiro Paulo César Farias?
Carrozza -
Nunca ouvi falar.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã