São Paulo, segunda, 24 de março de 1997.

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Nos encontros, Carrozza demonstrou desconfiança

dos enviados especiais a Locri

``Vamos nos encontrar então em Locri, que é a capital da N'drangheta'', disse jocosamente Rocco Carrozza. Foi assim que a Folha marcou o encontro e, por dois dias, conviveu com o que é chamado de máfia calabresa.
A reportagem constatou como vivem, na região da Calábria, membros do clã Morabito (pronuncia-se Morábito).
Rocco Carrozza é casado com Francesca, 42, filha maior de Giuseppe Morabito, 62, um dos homens mais procurados da Itália, que está foragido.
Processado nos anos 80 por sequestro, tráfico de drogas, extorsão e associação mafiosa, Carrozza foi absolvido.

O encontro O contato com Carrozza foi feito por meio de um italiano. Ele disse que jornalistas brasileiros queriam fazer uma reportagem sobre a Calábria, desemprego...e máfia. Quando ligamos para Carrozza, ele deixou claro que sabia do nosso verdadeiro interesse, ao ironizar sua cidade como sendo a capital mafiosa da Calábria.
Após dois dias de negociações, os detalhes do encontro foram finalmente acertados por telefone, de Reggio Calabria. Carrozza, então, marcou o local: um ponto da rodovia, na entrada de Gioiosa Jonica, balneário próximo a Locri.
Na hora marcada, 13h de sexta-feira, Carrozza não estava lá. Ele apareceu, em seu Alfa Romeu 164 azul, 25 minutos depois. Piscou o farol e nós piscamos de volta.
Ele então emparelhou seu carro com o nosso Fiat Bravo. Abaixou o vidro elétrico e olhou com persistência bem nos nossos olhos, por vários segundos, em silêncio. Depois, sorriu com o canto da boca, apresentou-se e disse: ``Vamos tomar um café. Vocês me seguem''.
Passamos dois dias o seguindo.

No café Visto inteiro, na entrada do café, ele parecia saído de uma obra de construção civil, sua atividade. As mãos, grossas e pequenas, estavam sujas com um pó cinza -o mesmo que coloria seu blazer xadrez em tons de marrom, sua calça verde e encobria-lhe o sapato.
Carrozza escolheu uma mesa ao fundo do bar. Cumprimentou o garçom com familiaridade -o que fazia com dezenas de pessoas por onde andava- e, com olhar e voz graves, começou a nos inquirir.
``O que vocês querem? Digam. Por que acham que eu posso ajudá-los a fazer uma reportagem sobre a Calábria?''
Queríamos saber da máfia, mas tínhamos sido advertidos sobre a irritação que determinadas perguntas diretas poderiam provocar. Depois de duas ou três questões genéricas, entramos no assunto.
``Queremos saber se, como dizem, a máfia existe.''
Durante o tempo todo, Carrozza nos olhava fixamente.
``Não existe máfia, não existe N'drangheta. O que mais querem saber?''
Nosso intermediário, em Roma, tinha advertido que essa respostas curtas e grossas eram típicas da região. Limitavam-se a responder laconicamente o que fora perguntado, sem se estender no assunto.
``Vocês querem saber o que é a Calábria, então vou mostrar. Vamos dar uma volta'', disse Rocco Carrozza.
A conta não foi paga. Como em outras ocasiões, Carrozza se fez oferecer pelo proprietário ou alguém que estava no café.

No carro Na saída, ele insistiu para que fossemos em um carro só -o dele. Enquanto dirigia, falava sobre a N'drangheta, os mafiosos, os crimes -coisas que, segundo ele, não existiam, é claro.
Sempre conversando, começou a acelerar forte até chegar a 175 km/hora em uma via urbana que separava Gioiosa Jonica e Locri. Perguntava se gostávamos do estilo esporte de guiar. Era uma clara tentativa de intimidação, de demonstração de poder.
Ali ficou selado o modo como seria o contato com Carrozza. Ele iria negar todo o tempo que fosse mafioso, mas agiria como tal -pelo menos de acordo com o estereótipo de um mafioso.
Na estrada, mostrou que o Estado e suas regras não contam muito. Isso ficava demonstrado também na construções abusivas que dominam a região. São casas semi-construídas, mas já habitadas, mesmo sem permissão para a obra ou habite-se. As poucas obras embargadas são tratadas como uma ingerência negativa do Estado.

Na sede da polícia
Para provar que a máfia não existe e que, portanto, ele não era mafioso, Carrozza insistiu que fôssemos à sede da polícia militar (carabinieri) local perguntar diretamente ao capitão de plantão.
Quando entramos, a impressão que tivemos é que todos haviam prendido a respiração. Os carabinieri desse quartel são suspeitos pela morte do cunhado de Carrozza, Domenico, filho de Giuseppe Morabito.
Pediu para ver o capitão. Um agente disse que ele não estava, e Carrozza lançou sobre ele o mesmo olhar profundo da estrada.
"Está olhando o quê?'', perguntou um oficial, muito nervoso.
Sem tirar os olhos do militar (e sempre com o mesmo sorriso), Carrozza disse: ``Os olhos foram feitos para ver. Olhar não mata''. ``Depende'', devolveu o oficial.
Voltamos no quartel outras três vezes e o chefe dos carabinieri coincidentemente nunca estava para dar o atestado de honestidade. Mas Carrozza provou que não teme os policiais. Pelo contrário, é respeitado e temido pelos representantes do Estado. (Lucas Figueiredo e Humberto Saccomandi)

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