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Nos encontros, Carrozza demonstrou desconfiança
dos enviados especiais a Locri
``Vamos nos encontrar então em
Locri, que é a capital da N'drangheta'', disse jocosamente Rocco
Carrozza. Foi assim que a Folha
marcou o encontro e, por dois
dias, conviveu com o que é chamado de máfia calabresa.
A reportagem constatou como
vivem, na região da Calábria,
membros do clã Morabito (pronuncia-se Morábito).
Rocco Carrozza é casado com
Francesca, 42, filha maior de Giuseppe Morabito, 62, um dos homens mais procurados da Itália,
que está foragido.
Processado nos anos 80 por sequestro, tráfico de drogas, extorsão e associação mafiosa, Carrozza
foi absolvido.
O encontro
O contato com Carrozza foi feito
por meio de um italiano. Ele disse
que jornalistas brasileiros queriam
fazer uma reportagem sobre a Calábria, desemprego...e máfia.
Quando ligamos para Carrozza,
ele deixou claro que sabia do nosso
verdadeiro interesse, ao ironizar
sua cidade como sendo a capital
mafiosa da Calábria.
Após dois dias de negociações,
os detalhes do encontro foram finalmente acertados por telefone,
de Reggio Calabria. Carrozza, então, marcou o local: um ponto da
rodovia, na entrada de Gioiosa Jonica, balneário próximo a Locri.
Na hora marcada, 13h de sexta-feira, Carrozza não estava lá. Ele
apareceu, em seu Alfa Romeu 164
azul, 25 minutos depois. Piscou o
farol e nós piscamos de volta.
Ele então emparelhou seu carro
com o nosso Fiat Bravo. Abaixou o
vidro elétrico e olhou com persistência bem nos nossos olhos, por
vários segundos, em silêncio. Depois, sorriu com o canto da boca,
apresentou-se e disse: ``Vamos tomar um café. Vocês me seguem''.
Passamos dois dias o seguindo.
No café
Visto inteiro, na entrada do café,
ele parecia saído de uma obra de
construção civil, sua atividade. As
mãos, grossas e pequenas, estavam sujas com um pó cinza -o
mesmo que coloria seu blazer xadrez em tons de marrom, sua calça
verde e encobria-lhe o sapato.
Carrozza escolheu uma mesa ao
fundo do bar. Cumprimentou o
garçom com familiaridade -o
que fazia com dezenas de pessoas
por onde andava- e, com olhar e
voz graves, começou a nos inquirir.
``O que vocês querem? Digam.
Por que acham que eu posso ajudá-los a fazer uma reportagem sobre a Calábria?''
Queríamos saber da máfia, mas
tínhamos sido advertidos sobre a
irritação que determinadas perguntas diretas poderiam provocar.
Depois de duas ou três questões
genéricas, entramos no assunto.
``Queremos saber se, como dizem, a máfia existe.''
Durante o tempo todo, Carrozza
nos olhava fixamente.
``Não existe máfia, não existe
N'drangheta. O que mais querem
saber?''
Nosso intermediário, em Roma,
tinha advertido que essa respostas
curtas e grossas eram típicas da região. Limitavam-se a responder laconicamente o que fora perguntado, sem se estender no assunto.
``Vocês querem saber o que é a
Calábria, então vou mostrar. Vamos dar uma volta'', disse Rocco
Carrozza.
A conta não foi paga. Como em
outras ocasiões, Carrozza se fez
oferecer pelo proprietário ou alguém que estava no café.
No carro
Na saída, ele insistiu para que fossemos em um carro só -o dele.
Enquanto dirigia, falava sobre a
N'drangheta, os mafiosos, os crimes -coisas que, segundo ele,
não existiam, é claro.
Sempre conversando, começou
a acelerar forte até chegar a 175
km/hora em uma via urbana que
separava Gioiosa Jonica e Locri.
Perguntava se gostávamos do estilo esporte de guiar. Era uma clara
tentativa de intimidação, de demonstração de poder.
Ali ficou selado o modo como seria o contato com Carrozza. Ele
iria negar todo o tempo que fosse
mafioso, mas agiria como tal
-pelo menos de acordo com o estereótipo de um mafioso.
Na estrada, mostrou que o Estado e suas regras não contam muito. Isso ficava demonstrado também na construções abusivas que
dominam a região. São casas semi-construídas, mas já habitadas,
mesmo sem permissão para a obra
ou habite-se. As poucas obras embargadas são tratadas como uma
ingerência negativa do Estado.
Na sede da polícia
Para provar que a máfia não existe e que, portanto, ele não era mafioso, Carrozza insistiu que fôssemos à sede da polícia militar (carabinieri) local perguntar diretamente ao capitão de plantão.
Quando entramos, a impressão
que tivemos é que todos haviam
prendido a respiração. Os carabinieri desse quartel são suspeitos
pela morte do cunhado de Carrozza, Domenico, filho de Giuseppe
Morabito.
Pediu para ver o capitão. Um
agente disse que ele não estava, e
Carrozza lançou sobre ele o mesmo olhar profundo da estrada.
"Está olhando o quê?'', perguntou um oficial, muito nervoso.
Sem tirar os olhos do militar (e
sempre com o mesmo sorriso),
Carrozza disse: ``Os olhos foram
feitos para ver. Olhar não mata''.
``Depende'', devolveu o oficial.
Voltamos no quartel outras três
vezes e o chefe dos carabinieri
coincidentemente nunca estava
para dar o atestado de honestidade. Mas Carrozza provou que não
teme os policiais. Pelo contrário, é
respeitado e temido pelos representantes do Estado.
(Lucas Figueiredo e Humberto Saccomandi)
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