São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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EXPLORAÇÃO
Contrariando a lei, proprietários rurais contratam trabalhadores em condições análogas à escravidão
Peões são vendidos por R$ 3 a fazendeiros

LUIZ MAKLOUF CARVALHO
enviado especial ao Pará
e ao Mato Grosso


Marlene Bergamo/Folha Imagem
Peões durante trabalho de aceiro de cerca -capina para evitar incêndios- em fazenda de São Félix do Xingu (PA)


Há mão-de-obra à venda, por R$ 3,00 ao dia, e às vezes por nada, nos 2.300 km e oito municípios que a Folha percorreu por 11 dias no interior do Pará (Xinguara, Parauapebas, Santana do Araguaia, Sapucaia, Água Azul do Norte, São Félix do Xingu e Redenção) e Mato Grosso (Vila Rica).
São os chamados peões de trecho -trabalhadores miseráveis, analfabetos, embrutecidos e errantes, que constituem a principal força de trabalho forçado.
Esse tipo de atividade, análoga ao trabalho escravo, caracteriza-se pela ausência de remuneração do trabalhador. Na modalidade mais comum, o trabalhador é levado a contrair dívidas que sempre ultrapassam o valor do suposto salário.
Um desses homens-mercadoria, entre os diversos que a Folha entrevistou, é o maranhense Wanderley Araújo dos Santos, 42, semi-analfabeto. Ele foi comprado em abril último, no hotel "peoneiro" (que hospeda peões) de Maria Baiana, em Santana do Araguaia.
Trabalhou por 50 dias em um desmatamento na fazenda Estrela de Maceió. Não viu a cor de um tostão. Continua no hotel, com seus colegas de sina, todos expostos à próxima oferta.
A fazenda Estrela de Maceió foi vítima recente (em fevereiro de 1998) da única operação do governo contra o trabalho escravo nos cinco meses deste ano.
Com apoio da Polícia Federal, um grupo móvel do Ministério do Trabalho entrou na fazenda, lavrou 16 autos de infração, apreendeu 2 armas e libertou 50 peões. "Pois agorinha mesmo tem mais 87 peões lá, nas mesmas condições, tipo escravo", disse Santos.

A arregimentação
É em hotéis como o de Maria Baiana que a cadeia de comando do trabalho escravo tem seu ponto principal de arregimentação.
O peão de trecho hospeda-se de graça -até que, a soldo de fazendeiros que afrontam a lei, um empreiteiro de homens, o chamado "gato", vai buscar a peãozada para o trabalho pesado de derrubada da mata ou de roçagem de pastos "sujos" (a chamada "juquira").
Já devendo ao hotel, algumas vezes bêbados -a cachaça é a grande companheira do peão- e embalados por promessas falsas, os peões embarcam em ônibus, camionetes e caminhões.
Levados para a área em que vão trabalhar, continuam submetidos ao "gato", por sua vez submetido aos fiscais que os fazendeiros pagam para controlar o serviço.
Santos explica: "Fazenda Estrela de Maceió. Eu tenho raiva até do nome dela. O "gato' era o Batista, de Redenção. Andava com um facão e um revólver na cintura. Tinha um "gato' maior ainda, o Maranhense.Eu trabalhei um mês e 20 dias, na mata mesmo, em barraco de lona preta, a R$ 6,00 a diária. Quando me dei conta, só deu para pagar o que devia, R$ 48,00. Paguei e saí. Lá não dava pra sobreviver. O que a gente ganhava era só pra comer mesmo".

O que diz a lei
Reduzir alguém à condição análoga de escravo (artigo 149 do Código Penal) é crime que dá pena de reclusão de dois a oito anos.
A Organização Internacional do Trabalho estima em seis milhões o número de trabalhadores escravos no mundo da globalização.
No Brasil, como em outros lugares, a principal forma de trabalho escravo é o endividamento, às vezes somado à proibição do direito de ir e vir (garantida pela presença de seguranças armados, os chamados "guaxebas") e a condições desumanas de sobrevivência.
O presidente Fernando Henrique Cardoso criou, em 1995, o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf, vinculado ao Ministério do Trabalho).
O Gertraf contabiliza, até aqui, uma dezena de operações relevantes: cerca de 640 trabalhadores libertados -220 de uma vez só, na Fazenda Flor da Mata, em setembro de 1997-, duas dezenas de processos em andamento contra os responsáveis, uma única condenação transitada em julgado (sem que nada até aqui tenha acontecido ao fazendeiro Antônio Barbosa de Melo, de Marabá) e quatro fazendas desapropriadas.
Apesar do trabalho do grupo, a Folha constatou que o comércio de peões continua a ser feito abertamente -e em alguns casos pelos próprios fazendeiros e "gatos" que já estão sendo processados.
É o caso do fazendeiro Luiz Pereira Martins e dos "gatos" que atuavam na Flor da Mata, em São Félix do Xingu, punitivamente desapropriada no ano passado.
No hotel do "gato" Antônio Canela, em Xinguara, peões contaram horrores sobre o trabalho na Fazenda Pedra Branca, uma das muitas que pertencem a Luis Martins e ao Grupo Umuarama.
O peão Ivan Pereira da Rocha, menor de 16 anos, ficou os últimos meses de fevereiro e março trabalhando numa derrubada, e até 10 de maio não recebera um centavo.
Antes, disse, foi peão na Fazenda Santa Helena, onde passou 18 dias borrifando veneno na juquira, sem qualquer proteção. "Eles deviam dar ao menos um leite, mas não deram nada", diz Ivan, mostrando as pernas e as mãos manchadas pelo veneno.
A 280 km dali, São Félix do Xingu sofre a derrubada nas fazendas localizadas após a travessia do rio Fresco, na região do Iriri.
No dia 4 de maio, por exemplo, o "gato" Nilson despejou dois caminhões com 150 peões na Fazenda Mundial. "Esse movimento tem sido direto", diz Ângelo Pereira, 44, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais.



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