São Paulo, quinta-feira, 24 de junho de 2004

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JANIO DE FREITAS

Outra visão

Por diferentes formulações, muitos dos que comentaram a morte de Leonel Brizola coincidiram na idéia de que ali se encerrou uma era, um ciclo ou, o que é quase o mesmo, desapareceu "o último populista". É possível. Mas não indiscutível.
Pode-se, e talvez se deva, com mais razão identificar em 1995 o encerramento de um ciclo, no sentido que lhe foi dado pelos comentários. Com o governo de Fernando Henrique que então se inicia, a conjunção de poder político, meios de comunicação e interesses internacionais impõe o abandono de concepções presentes, e determinantes, em pelo menos seis décadas e meia da vida brasileira, fosse regime democrático ou ditadura, fossem quais fossem o presidente, o ditador, a composição política no poder ou a corrente militar dominante.
A ampla variação de graus do nacionalismo, entre a obstinação rígida e a aceitação por conveniência, constituiu um ideário que em nenhum momento, pelo menos desde a Revolução de 30 até 95, deixou de integrar cada parte da vida política e econômica. Rejeitá-lo nunca passou de ato individual, e assim mesmo tão excepcional, que conferiu uma identidade extra às pessoas de que o "entreguista" Roberto Campos se tornou referência.
O multiforme ideário nacionalista é a primeira demolição, ou primeira ruptura, que se inicia em 95. Tão veloz e eficiente foram os tratores, que em pouco tempo se viam comandos militares associando-se a operadores da Embaixada dos Estados Unidos para entregar a uma empresa norte-americana, por meios artificiosos, o esquema de segurança da metade norte do Brasil. Nem a soberania, como conceito ou como sentimento, sobreviveu onde mais deveria existir, que dirá no Congresso sujeitado e na população dependente da mídia.
A partir de 95, o Brasil torna-se um apêndice do sistema internacional de exploração financeira dos países secundários, sistema a que, como parte do seu jogo, os interessados deram o nome amorfo de mercado. Já por aí o que se instalou, a partir de 95, foi uma concepção absolutamente nova de função do governo, da riqueza nacional e da relação entre presente e futuro.
Um país esvaziado de nacionalismo não pode ter uma idéia viva de povo. A predominância de princípios e fins originários de fora e orientados para fora resultou no que Fernando Henrique, em uma formulação primária, denominou de rompimento com o getulismo. Era o rompimento com as causas sociais próprias de governo. Por mais tênue e desagradado que fosse, o dever governamental para com a população - seu poder aquisitivo e os serviços de que depende (hospitais, estradas, escolas e universidades, segurança) - nunca foi negado como razão de ser dos governos, por pouco que alguns o tenham praticado.
A partir de 95 instaura-se o predomínio do combate à inflação à custa dos investimentos governamentais, dos deveres gerais para com a população e do empobrecimento nacional por falta do necessário e possível crescimento econômico. Sempre secundárias na prática, as razões sociais da existência de governo deixaram de figurar nas concepções dominadoras do país. O governo tornou-se dispensado do compromisso com a população.
Mesmo com dois mandatos, um governo não bastaria para encerrar um ciclo histórico. Mas o governo Lula confirma o encerramento. E a maneira de fazer política do próprio Lula, talvez ainda por um resquício de constrangimento, não é senão o "populismo" que, na afirmação de alguns comentários, teria desaparecido com Brizola.


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