São Paulo, Quarta-feira, 24 de Novembro de 1999


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ELIO GASPARI
Precisa-se: Fernando Henrique Cardoso

Quem se lembra do quinto dedo daquela mão que aparecia na campanha eleitoral de 1994?
O segundo (fura-bolo) era o do emprego. O mindinho era o da segurança. É dele que o país está precisando. Há horas em que uma sociedade precisa da liderança moral do chefe de Estado e, por mais que se possa criticar FFH como chefe de governo, ele dispõe de ascendência para desempenhar esse papel.
É impopular, mas é respeitado (Itamar Franco era popular, mas não era respeitado). São muitas as pessoas que não acreditam em FFH, mas são poucas aquelas que se sentem bem não acreditando nele. (Quem não acreditava em Fernando Collor, inebriava-se com suas malfeitorias, demonstrando que ele não merecia a confiança que lhe haviam dado.)
Graças aos trabalhos da CPI do Narcotráfico e à percepção pelos políticos da revolta popular contra as autoridades metidas com a bandidagem, deram-se dois fenômenos. Num, a patuléia passou a ter o prazer de assistir a cenas em que pessoas de terno e gravata saem à rua algemadas. Esse é o lado espetacular da coisa, mas há o outro, aterrorizante. A mesma patuléia deu-se conta da extensão das relações incestuosas entre o crime e a banda podre das forças da ordem. Deu medo.
O cidadão brasileiro que tinha medo de ser assaltado na esquina está com medo de viver numa sociedade em que, seja qual for a situação, o bandido é mais forte que ele. É mais forte porque está armado, mas pode ser mais forte porque é senador, porque tem um amigo juiz ou primo delegado. As iniciais QI, usadas para designar o quociente de inteligência de quem faz teste psicológico, designam também "quem indicou". Antigamente, esse QI era usado para empregar uma cunhada ou para apressar um processo. Agora, percebe-se que a rede de apadrinhamentos liga-se ao crime.
O brasileiro está com medo. O prefeito de Niterói informa que pretende construir 12 pórticos para fiscalizar a entrada e saída de suspeitos na sua cidade. Arquitetonicamente correto, informa que pretende pedir a Oscar Niemeyer que faça os projetos das barreiras. Então a coisa fica assim: se a barreira é de Niemeyer, como Niemeyer é de esquerda, ela significa mais um passo na marcha inconteste da humanidade em direção à igualdade.
Os pórticos de Niterói, como as grades do edifício ao lado e os balcões onde se exige carteira de identidade aos cidadãos que vão a um edifício, são produtos do medo a serviço do segregacionismo.
Resultam no seguinte:
Um negro entra numa das pontes de Nova York a bordo de um carro esporte caro e vermelho. Seu rádio toca, alto, um rap. Ele veste roupas coloridas, tem cabelos compridos e cordões de ouro no pescoço. Um guarda vê a cena e manda que ele pare:
"Quem é o senhor?"
"Sou o professor Cornell West, da Universidade de Princeton."
"Está certo. E eu sou a Virgem Maria", respondeu o guarda.
Era o professor Cornell West, um dos maiores filósofos americanos.
Quem quiser a mesma cena em português, pode ficar com a seguinte:
A aeromoça brasileira de uma companhia brasileira vê o negro entrando no avião, nos Estados Unidos, e, gentilmente, pede-lhe o cartão de embarque, para indicar-lhe a localização de seu assento:
"Your boarding pass, please."
Negro bem vestido, só podia ser americano. Era o professor Milton Santos, da Universidade de São Paulo.
A sociedade brasileira, amedrontada, quer mais grades, pórticos, patrulhamentos exclusivos, cabines de policiais na entrada da rua. Quer isso porque não vê outra coisa mais eficaz para sentir-se segura. É pena, mas tudo isso não adianta um níquel. Vai-se chegar a uma situação em que as pessoas, amedrontadas, chegarão a tal grau de enclausuramento que a liberdade de andar nas ruas será exercitada com mais naturalidade pelos bandidos. Hoje em dia, um brasileiro abastado que sai de casa para o trabalho passa por mais grades e controles de segurança do que um presidiário numa jornada de detenção.
Na última vez em que FFH tratou da questão da violência, perdeu uma maravilhosa oportunidade de ficar calado. Disse o seguinte:
"Estamos chegando a uma espécie de enxaqueca de violência. Esse tipo de violência que não se sabe de que lado vem. O Brasil, que sempre foi uma sociedade desarmada, apesar de a violência sempre ter existido, agora está em estado de alerta. Talvez uma campanha nacional seja uma boa solução".
Como diria a Banda de Ipanema: "Yoleshman Crisbeles".
Não há enxaqueca alguma. Enxaqueca de violência, bem como gripe de impunidade, é pudim de palavras. Campanha nacional também não é coisa alguma. É coisa de marqueteiro para torrar o dinheiro da Viúva.
Com certeza (sem talvez) a boa solução é o exercício da liderança moral do presidente da República. Tomando-se apenas alguns episódios recentes, pode-se dizer que, entre outras coisas, isso quer dizer o seguinte:
1) Expulsão imediata da coligação governista de todos os parlamentares federais e estaduais denunciados por envolvimento com o crime. Eles podem continuar em seus partidos, mas saem daquela lista que o Planalto afaga com tanto carinho.
2) A exigência de uma explicação pública e imediata das autoridades encarregadas de zelar pelo programa de proteção a testemunhas, informando como conseguiram gastar apenas R$ 652 mil dos R$ 3,4 milhões que o Orçamento lhes dava. Ou devem ser postos na rua por perdulários, porque pediram mais que o necessário, ou para a rua devem ir por não terem conseguido fazer o serviço que disseram ser essencial.
3) A notificação, a todas as autoridades encarregadas da proteção de testemunhas, de que se algo acontecer a uma delas, toda a cadeia hierárquica envolvida no episódio será demitida, com humilhação.
Não se pede ao chefe de Estado brasileiro que se vista de Rambo e saia por aí a fingir que caça bandidos. Pede-se apenas que corra em campo. Só ele poderá impedir que prospere, debaixo da asa da segurança, o medo segregacionista que está se avolumando na sociedade brasileira. Vai dar muito trabalho, mas esse tipo de exercício da autoridade moral nada custa ao Erário. Custa a FFH um esforço que só ele sabe quanto pesa: custa ser Fernando Henrique Cardoso.


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