São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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DIRETAS, 20 ANOS

Democracia conduziu os líderes das diretas ao poder nas décadas seguintes, mas problemas socioeconômicos permanecem

Perdedores de 84 governam país há 10 anos

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM BRUXELAS

O palanque das Diretas-Já acabou vencendo, embora com atraso de dez anos, para permanecer no poder nos dez anos seguintes.
É esse o resultado desses 20 anos pós-derrota no Congresso Nacional da emenda Dante de Oliveira, caso se tome como pró-diretas os adversários de sempre da ditadura militar (mais aqueles que migraram para a oposição desencantados com o regime que inicialmente apoiaram).
Esse heterogêneo conglomerado tomou o poder, a rigor, em 1993, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu o Ministério da Fazenda, no governo de Itamar Franco. Nele permaneceu com o próprio FHC até 2002, e ganhou um terceiro mandato com Luiz Inácio Lula da Silva, a partir do ano passado.
Lula era o líder indiscutível da esquerda no palanque das diretas. FHC dividia a liderança da centro-esquerda com, entre outros, Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Tancredo Neves, seus padrinhos políticos, hoje todos já mortos.
Fernando Henrique oscilava, aliás, entre Ulysses, que teoricamente seria o candidato de um PMDB ainda muito grande e algo mais definido ideologicamente, e Tancredo, o conservador que acabou sendo o candidato porque a eleição direta só chegaria cinco anos depois.
O que é paradoxal é que, uma vez no poder, FHC e Lula praticaram políticas que o sentido comum associa mais à direita e, por extensão, ao regime militar ao qual ambos se opuseram.
A sabedoria convencional diz que a esquerda é estatizante e, a direita, liberalizante. E as faces políticas mais notórias da ditadura militar foram, a princípio, as dos ultraliberais Roberto Campos e Octávio Bulhões.
Mas o ciclo militar, longe de desestatizar, criou um colar de empresas estatais, para acrescentar às que já herdara do chamado nacional-desenvolvimentismo que predominara a partir dos anos 40. Para não mencionar o fato de que matou as liberdades públicas que os liberais diziam defender.
O palanque das Diretas-Já começou a ser armado justamente no momento em que o cerco autoritário na América Latina estava se esgarçando. O primeiro (e modesto) comício das diretas diante do estádio do Pacaembu, em São Paulo, foi contemporâneo, por exemplo, da posse de Raúl Alfonsín como presidente na Argentina, que colocava fim a uma ditadura militar de sete anos.
Mas foi contemporâneo também do princípio do fim da Guerra Fria, o combate ideológico entre Estados Unidos e União Soviética, que simplificava ao extremo a divisão política.
Quando os primeiros comícios sacudiram o Brasil, direita e esquerda ainda eram palavras que pareciam definir claramente cada ator político. No caso, a simplificação levaria a dizer que a esquerda estava no palanque das diretas, a direita na trincheira oposta.
Mas, quando o palanque das diretas finalmente venceu, dez anos depois, a Guerra Fria já havia sido vencida pelos Estados Unidos. Tornou-se mais fácil para um governo centro-esquerdista, como o de Fernando Henrique Cardoso, empenhar-se, como ele próprio chegou a dizer em algum momento, em desmontar a era Vargas (do presidente Getúlio Vargas que governou 15 anos como ditador, a partir de 1930, e como presidente legítimo de 1950 até seu suicídio, em 1954).
O Estado brasileiro, que chegou a administrar hotéis e fábricas de tecidos, virtualmente desapareceu como empresário nos anos FHC. Lula, teoricamente mais à esquerda que seu antecessor, não fez rigorosamente nada até agora para mudar o quadro herdado.
De alguma maneira, é razoável dizer que as Diretas-Já, se ganharam o governo por meio de dois de seus líderes, perderam o grito ("mudanças já") que se escondia atrás da reivindicação de eleição presidencial direta e, por extensão, de devolução da soberania a seu legítimo titular, o eleitor.
De fato, diretas e mudanças pareciam irmãs siamesas na mobilização popular, a maior, de longe, de toda a história brasileira. Não fosse o visível esgotamento do ciclo militar, tanto institucional como econômica e socialmente, é pouco provável que as ruas se pintassem de amarelo, a cor das diretas, com a intensidade que se viu nas grandes capitais e até em cidades menores.
Nesses 20 anos, o país avançou institucionalmente como nunca em todos os seus 182 anos de história independente. Não há veto a partido político algum; as centrais sindicais foram reconhecidas; o movimento social goza de direitos negados a maior parte do tempo; não há a menor restrição às liberdades públicas.
As eleições haviam ficado, desde 1966 até 1982, limitadas a um bipartidarismo artificial.
Governadores ganharam a depreciativa designação de biônicos, por serem eleitos indiretamente, o que acontecia também com os prefeitos de capitais e de áreas de segurança.
O "colégio eleitoral" que escolhia o presidente da República era formado pelo Alto Comando do Exército, com participação nem sempre relevante das duas outras forças. O Congresso apenas carimbava a escolha dos generais.
Quando o grito de "diretas já" estourou nas ruas, o brasileiro não elegia o presidente diretamente havia 24 anos, desde que Jânio Quadros foi eleito em 1960, para renunciar sete meses após a posse. A derrota da emenda Dante de Oliveira acrescentou cinco anos ao jejum do eleitorado, e só em 1989 o presidente voltou a ter a legitimidade de origem.
Hoje, ao contrário, não há um único vereador, prefeito, deputado (federal ou estadual), senador, governador cujo emprego não dependa das urnas.
Mas, econômica e socialmente, os problemas não são diferentes do que eram quando o grito de "diretas já" ecoou no país todo. De certa forma, são até maiores, porque, até o início dos anos 80, o Brasil vinha de um século de crescimento econômico que, na média, foi o maior do mundo.
Hoje, vem de duas décadas de profunda anemia, que jogaram o desemprego para níveis recordes.
Os palanqueiros das diretas sempre achavam um jeito de incluir em seus discursos a crítica à distribuição de renda profundamente injusta. Foi da oposição ao regime militar que nasceu a expressão "Belíndia", para simbolizar que, no Brasil, uma pequena Bélgica desenvolvida convivia com uma gigantesca Índia pobre.
Criação do economista Edmar Bacha, um dos "economistas da oposição" que não perdoavam Delfim Netto, o economista que mais tempo passou na Fazenda durante o ciclo autoritário.
Muitos dos "economistas da oposição" viraram governo quando o palanque das diretas finalmente chegou ao poder em 1993. Outros ainda tiveram de esperar até o ano passado, mas também passaram ao governo com a posse de Lula na Presidência.
Nem eles nem Delfim Netto, transformado em conselheiro de seus ex-críticos, ousam dizer que o Brasil deixou de ser uma "Belíndia". É a dívida que o sonho das Diretas-Já não conseguiu pagar até agora.


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