São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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FOLCLORE POLÍTICO

A recontagem

BORIS CASOY

As eleições brasileiras viviam a era da cédula única. Dizia-se então estar definitivamente enterrado o período das fraudes eleitorais. O sistema era considerado seguro, quaisquer dúvidas poderiam ser mais facilmente dirimidas com uma mera recontagem de votos.
Dr. Gomide, um velho juiz em final de carreira, presidia sua última eleição. Depois viria a aposentadoria e a vida sossegada. O pleito fora tranquilo, a apuração, sem problemas. Bastaria conferir, assinar, e pronto. De repente, cai sobre a mesa um requerimento de recontagem dos votos de uma urna. A secretária informa que na sala está, impaciente, o autor do pedido, o sapateiro Donato, famoso pela pouca delicadeza com que tratava os seres humanos, especialmente os de sua família. "Manda entrar o reclamante."
Olhos vermelhos, lábios trêmulos, lá estava Donato. "Dr. Gomide. Me candidatei a vereador para ajudar o Brasil. Tenho prontinho um projeto de pena de morte, outro aumentando o salário mínimo, outro proibindo candidato chamar ouvinte de rádio de burro e outro obrigando todo candidato a pelo menos ter visto uma vaca duas vezes na vida. Não sei como perdi a eleição. Agora, tem uma coisa: tem dente de coelho. Minha mulher votou em mim e na urna dela não apareceu nem sequer um voto no meu nome. Fui roubado. Exijo recontagem."
"Amanhã tá recontado. E o erro, se houver, corrigido." Tarde da noite, soa a campainha na casa do juiz. Lá estava Amélia, mulher de Donato: "Dr. Gomide. Meu marido contou que pediu recontagem. Se o sr. disser que não votei nele, o Donato me mata".
"Mas por que não votou em seu próprio marido, Amélia?"
"Já acostumei com o Donato. Mas descobri que sou patriota. Me arrepio toda quando ouço o Hino Nacional. Não quero que o Brasil sofra o que sofri. Já imaginou se Donato chega a presidente? No começo, estimulei a candidatura dele. Minha vizinha Maricota meteu na minha cabeça que eu devia fazer o mesmo que uma família de São Paulo: os irmãos ajudam sempre a eleger o mais chato deles. Assim se livram do cara, mas o Brasil paga o pato."
Gomide não teve dúvidas. No dia seguinte, a "recontagem". Donato estava aliviado, a mulher votara nele. Gomide com a consciência tranquila. Passara por cima da lei, mas estava convicto de ter salvo Amélia e o Brasil.


Boris Casoy, 61, âncora e editor-chefe do "Jornal da Record", escreve aos domingos nesta coluna



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